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Salmo 127

1 Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela.

2 Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores, pois ele supre aos seus amados enquanto dormem.

3 Eis que os filhos são herança da parte do Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão.

4 Como flechas na mão dum homem valente, assim os filhos da mocidade.

5 Bem-aventurado o homem que enche deles a sua aljava; não serão confundidos, quando falarem com os seus inimigos à porta.

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sexta-feira, 4 de junho de 2010

2° Guerra Mundial - O Cerco de Leningrado

Em fins de 1941 o Presidium do Soviete Supremo instituiu uma medalha pela corajosa defesa de Leningrado. No dia mesmo em que tal medalha era instituída, 3.700 habitantes da cidade morriam de fome! Mas o pior estava para vir: a antiga São Petersburgo, capital dos czares, sofreria ainda 900 dias de fome.


A cidade heróica



Seja qual for o julgamento que a História venha a fazer da, para nós lamentável, experiência comunista, não há dúvida de que Leningrado e Stalingrado, cidades que levam os nomes dos mais famosos (ou infames) líderes comunistas, é que mais merecidamente simbolizaram o desafio a Hitler e a derrota do nazi-fascismo. Assim como Leningrado precedera Stalin, a cidade de Leningrado teve precedência sobre Stalingrado no processo de espantosa tribulação, que começou no inverno de 1941, a que Hitler submeteu os grandes centros russos.



As primeiras granadas alemãs caíram sobre a cidade de Leningrado a 1o de setembro de 1941; o anúncio da suspensão do bloqueio foi feito a 27 de janeiro de 1944, e a cidade ainda permaneceu cercada pelo inimigo por três semanas depois disso - de modo que o sítio durou 900 dias. Foi o sítio mais prolongado dos tempos modernos e por certo o mais violento de toda a História. Isto porque não só a moderna tecnologia desenvolveu muito o método do massacre, como também as ordens que deram aos sitiantes eram para arrasar a cidade inteira e aniquilar os seus habitantes, sem exceção.



Embora não estivessem muito bem a par das intenções de Hitler para com eles, os habitantes de Leningrado agiram, desde o momento em que perceberam o perigo, com admirável e mesmo espantosa unanimidade de propósito. Uma das grandes virtudes do emocionante e evocativo texto de Alan Wykes é que dele ressuma um pouco da maneira de ser do povo da capital setentrional, do seu espírito de independência, imposto por fatores adversos, como o inverno e a crônica e grosseira antipatia de Stalin.



Também ficou provado que eles tinham de depender de si próprios. Os dois primeiros meses do sítio foram bastante rigorosos, pois uma população de três milhões de almas devora diariamente espantosa quantidade de alimento - e toda a Rússia vacilava ao impacto do golpe desferido pelos alemães, com resultados cataclísmicos sobre todos os meios de comunicação e abastecimento. A 9 de novembro o terminal ferroviário de Tikhvin caiu em poder dos alemães e, como o autor narra tão vividamente, “eliminou toda e qualquer possibilidade de fazer chegar a Leningrado um grama sequer de alimento”.



Ninguém jamais saberá quantos leningradenses morreram naquele primeiro e terrível inverno, pois o ato de manter-se vivo era por demais pesado, não conseguindo os que a ele resistiram a energia necessária para a contagem dos mortos; bastava-lhes a certeza de que o frio que mata, impede também a decomposição dos corpos e a onda de doenças que dela decorre. A neve recobriria os corpos daqueles que morreram nas ruas, onde se manteriam sepultados até que a primavera trouxesse o degelo. Enquanto isso não se verificava, o importante era tentar suportar as armadilhas da morte.



Mas, para os que viram chegar o amanhã, os problemas diminuíram muito pouco durante os meses seguintes. Apesar da absorção gradativa, por parte dos exércitos vermelhos, dos golpes vibrados por Hitler; apesar da série de extraordinárias vitórias conquistadas pelas forças russas no sul, Leningrado, no norte, permaneceu sob o férreo domínio da Wehrmacht até muito depois de libertas grandes faixas de terra ocupadas pelo invasor. Somente muita determinação e a força de alguma coisa mais que o vigor físico poderiam ter conferido àquela gente meios para suportar tanta provação por tanto tempo.



“Eles estavam defendendo a cidade que Pedro construíra sobre os ossos dos seus ancestrais”, escreve Alan Wykes em merecido tributo à força por eles demonstrada, “e talvez isso lhes desse, sem que se possa explicar, a coragem que jamais lhes faltou”.






Os atacantes



Hitler promoveu-se a comandante supremo das Forças Armadas alemães a 4 de fevereiro de 1938. Assim fazendo, ele atendeu à sua irresistível megalomania, enfeixando nas mãos o controle dos assuntos civis, políticos e militares do Terceiro Reich. A prolongada batalha que travou para provar a seus generais que lhes era superior em habilidade terminara em triunfo. Para tanto, ele usou de tudo contra os seus opositores, desde o assassínio (no qual as SS eram os assassinos de aluguel) as falsas acusações de sodomia, como a que fez contra o comandante-chefe von Fritsch. O longo exercício da atividade golpista dirigida contra os inimigos pessoais e os que se opunham ao partido nazista serviu-lhe de treinamento em estratégia psicológica de que se utilizou proveitosamente no período que precedeu a Segunda Guerra Mundial.



Quando os Aliados declararam guerra a Hitler, a 3 de setembro de 1939, a estratégia por ele posta em prática, evitando abrir campanhas simultâneas nas frentes Oriental e Ocidental, foi bem sucedida. Embora inimigo declarado do comunismo, ele não podia dar-se ao luxo de combater a Rússia simultaneamente com os Aliados. O plano que havia traçado para o domínio da Europa previa inicialmente a derrota das potências ocidentais, por isso que o volume das forças que possuía e os planos que tinha preparado se limitavam àquele objetivo. Ele não tinha ilusões sobre os efetivos reais e a eficiência do exército vermelho, só teoricamente mais forte do que eram. De qualquer forma, uma campanha na frente Oriental envolveria o estabelecimento de linhas de comunicação imensamente longas sobre terrenos difíceis e em condições climáticas que reduziriam as chances de sucesso.



Para evitar tal campanha, ele astutamente fizera um Acordo Comercial e um Pacto de Não-Agressão com a Rússia em agosto de 1939. O Acordo Comercial; lhe garantiria matérias-primas em troca de equipamento industrial alemão, e o Pacto de Não-Agressão lhe renderia - assim esperava - a confiança do povo russo em suas intenções pacíficas. O povo russo depositava, provavelmente, tanta confiança no Pacto quanto a Inglaterra no “pedaço de papel” de Chamberlain; mas Molotov o assinara e Stalin o subscrevera e, naturalmente, ambos eram infalíveis. O Pravda abriu a boca oficial e murmurou sua aprovação. Estava garantida a paz entre os dois países por, no mínimo, dez anos. Estava também proibida aos dois signatários a vinculação a qualquer potência que pudesse abrigar objetivos antagônicos a qualquer dos dois, e prevista “consulta em questões de interesse comum”.



O verdadeiro valor do Pacto pode ser medido pela revelação que Hitler fez do seu objetivo final, em conferência com seus chefes militares, realizada a 22 de agosto de 1939 - no exato momento em que Ribbentrop retornava a Moscou para assinar o Pacto: “O Pacto, senhores, é apenas um meio de ganhar tempo... esmagaremos a União Soviética”. A revelação foi feita sem qualquer ênfase especial. A maioria dos oficiais presentes aceitou-a apenas como parte dos desígnios de Hitler de levar finalmente a Alemanha ao domínio do mundo, uma vez concluída vitoriosamente a guerra com as potências do Ocidente, porquanto todos concordavam em que era impossível brigar ao mesmo tempo nas duas frentes. No momento em que tal revelação foi feita, a Alemanha não havia sequer iniciado a tenebrosa jornada, embora Unidades da Caveira das SS já estivessem a caminho da Polônia para dar cumprimento à ordem de Hitler de “Matar sem piedade todos os homens, mulheres e crianças de raça ou língua polonesa”.



Pode-se dizer que esses acontecimentos tiveram os freios arrancados violentamente quando a Grã-Bretanha se viu compelida à declaração de guerra, a 3 de setembro de 1939. Passada uma quinzena, a Polônia ocidental foi ocupada pelos alemães, e a Polônia oriental pelos russos. A intenção de Hitler de destruir a nação polonesa já estava claramente demonstrada, despojada de qualquer pseudojustificativa, como “direitos territoriais”. Mas a Rússia necessitava de uma desculpa, para manter-se nos limites dos termos do Pacto, embora a intenção de seus dirigentes ao ocupar a Polônia oriental fosse dar uma demonstração de força, uma garantia contra possíveis - e aliás, prováveis - atos de agressão de Hitler.



Pretextaram os russos que a Polônia mergulhara no caos, que o governo se encontrava onde ninguém sabia e que os 11 milhões de ucranianos e russos brancos que viviam na Polônia precisavam de “cuidados e proteção”. Assim, os exércitos vermelho e alemão, no avanço que realizaram, dividiram em duas partes a Polônia, no sentido norte-sul, ocupando cada qual o pedaço que conseguiu dominar. A 28 de setembro, Molotov e Ribbentrop assinaram mais outro acordo, reforçando o Pacto. Para salvar as aparências, atiraram à face do mundo o absurdo de que a transa foi feita para evitar “a desintegração da Polônia”. O acordo foi assinado na fronteira, seguido de lauto jantar, após o qual “o Camarada Molotov e Herr von Ribbentrop fizeram discursos de boas-vindas”. A divisão da Polônia entre os dois grandes rapinantes estava consumada.



Trocando juras de imorredouro e mútuo afeto, Alemanha e Rússia saíram a apregoar, a primeira, desejos de paz, a segunda, absoluta neutralidade. Hitler ofereceu termos de paz à Grã-Bretanha e França a 8 de outubro, e Molotov disse, em 31 de outubro: “Nossas relações com a Alemanha melhoraram sensivelmente - somos neutros na luta da Alemanha contra a agressão britânica e francesa”. Exultante com a conquista praticamente sem luta da Polônia oriental, a Rússia começou a tentar obter ardilosamente “um pedaço” da Finlândia. Territorialmente, na verdade, tratava-se de uma pequena área na fronteira russo-finlandesa, à 32 km a noroeste de Leningrado. A obtenção do pedaço visado avançaria a fronteira da Rússia para o norte e lhe daria o porto marítimo de Hangö, onde instalaria uma base naval para proteger a passagem vital pelo Golfo da Finlândia até Leningrado. Nas várias semanas de negociações, os russos tentaram inclusive trocar grande parte do território da Carélia pela cidade de Hangö e uma faixa de menos de 160 km de largura ao longo da fronteira.



As negociações deram em nada. Houve um “incidente” de fronteira - provavelmente forjado - em fins de novembro e a Rússia ab-rogou o Pacto de Não-Agressão que tinha com a Finlândia e invadiu-lhe as fronteiras sem prévia declaração de guerra. Passados alguns dias, um governo-títere russo foi ali instalado e - segundo o Pravda - “Foi recebido com júbilo pelo povo finlandês”, mas os finlandeses jubilosos eram apenas os simpatizantes comunistas. O Feldmarechal Mannerheim reuniu em torno de si imensa maioria do povo com emocionante chamado para defender a integridade do solo pátrio. Tornou-se logo evidente que a concretização das exigências territoriais à Finlândia não seria nada fácil.



Durante três meses registrou-se violenta luta na qual as perdas russas, considerando-se a área de território conquistada, foram excepcionalmente grandes. Os finlandeses, protegidos pela “Linha Mannerheim”, e muito mais experientes que os russos no uso de esquis e na arte de camuflagem na neve, superavam-nos em mobilidade e artifício quando se pegavam em batalhas regulares, enquanto que as fortificações da “Linha Mannerheim” se mantinham inexpugnáveis diante dos bombardeios defeituosamente feitos pela artilharia russa. Impunha-se, desse modo, uma formulação de todo o planejamento. O ataque foi cancelado; explicações tranqüilizantes para o fracasso do invencível exército russo foram inventadas; o Alto Comando nomeou o Marechal Timoshenko Comandante-Chefe e, durante cinco semanas, foi ponderadamente planejado novo ataque à “Linha Mannerheim”.



Mesmo assim, quando ele começou - a 11 de fevereiro de 1940 - não houve vitória fácil. Grandes forças foram lançadas contra os finlandeses, que resistiam ferozmente, e só depois de 48.000 soldados russos mortos é que o Feldmarechal Mannerheim se rendeu. De Moscou, um grande brado de triunfo resoou pelo exterior. “Naturalmente, nossas condições para a paz são muito mais rigorosas à luz da retumbante vitória do que as oferecidas durante as negociações pacíficas; mas o povo finlandês, obrigado à resistência estúpida pelos sicários de Mannerheim, nada sofrerá. Que ninguém diga que o povo soviético não tem compaixão ou que a cupidez motiva as exigências que fez. A capital do país, que poderia ter sido tomada, permanece livre, assim como todas as regiões da Finlândia que não têm valor para a defesa da Rússia”. Ironicamente, ao apresentarem termos mais rigorosos, os russos também estavam preparando uma vara para surrar as próprias costas; mas, por enquanto a vara não seria usada.



O Tratado de Paz com a Finlândia foi assinado a 12 de março de 1940. No começo de abril os alemães invadiram a Noruega e Dinamarca e em princípios de maio sete divisões blindadas suas penetraram na França, e três na Bélgica e Holanda. A tristemente insignificante e mal armada F. E. Britânica, com suas linhas de comunicações muito extensas e com apenas uma esquadrilha de bombardeiros e uma de caças da RAF em seu apoio, foi obrigada a recuar para a costa, enquanto o exército francês se desintegrava gradualmente até que, a 14 de junho, o General Weygand anunciou não ser ele mais capaz de oferecer qualquer resistência organizada. A evacuação de Dunquerque começou a 24 de maio e a 17 de junho a França pediu armistício.



Com a queda da França e a aparente derrota da F. E. Britânica, Stalin considerou que a guerra no Ocidente estava praticamente terminada. Começavam a ver, os russos, sinais de perigo. Com ou sem pacto, não podia deixar de ser levada em conta a ameaça representada pela Alemanha, que perdera na campanha contra a França apenas a metade do que perdeu a Rússia na guerra relativamente pequena com a Finlândia. A Alemanha não estava exaurida: a guerra no Ocidente fora muito rápida, e os recursos com que contava o Alto Comando eram suficientemente grandes para que aquela guerra representasse mais que insignificantes mossa na máquina militar germânica. Stalin pôs a Rússia a trabalhar imediatamente, impondo uma semana de seis dias a todos os trabalhadores, a produção de material bélico foi acelerada e ao povo foi comunicado que “A situação internacional exige que fortaleçamos a defesa do nosso país e o poderio das nossas forças armadas a cada dia que passa”.



Mas, naturalmente, era preciso continuar as relações amistosas com a Alemanha, ainda que apenas de maneira superficial. Enquanto o exército vermelho era reorganizado e preparada a máquina de produção, havia, nas colunas do Pravda, freqüentes e ardorosas referências ao clima de concórdia existente entre as duas nações.



Contudo, a concórdia praticamente de nada adiantou, pois a 28 de junho tropas do exército vermelho ocuparam sem derramamento de sangue o estado Balcânico da Bessarábia, que era na realidade possessão romena desde 1920 - embora não fosse reconhecida como tal pelos russos. A ocupação era uma ameaça muito grande às fontes petrolíferas romenas para que a Alemanha não reagisse com alarma, e durante o restante do verão de 1940, enquanto mantinha as aparências de obediência ao Pacto Germano-Soviético, a Alemanha ocupou a Romênia e a Bulgária com tropas eufemisticamente chamadas de “missões militares” e depois invadiu abertamente a Iugoslávia e a Grécia.



Seguiram-se protestos russos contra a infiltração, com objetivo de posse, de forças alemãs nos Bálcãs. Ao invocarem os russos a cláusula do Pacto que exigia “consulta em questões de interesse comum”, Ribbentrop respondeu - não sem alguma justiça - que eram despiciendas as alegações soviéticas, pois com a ocupação da Bessarábia, os russos revogaram o Pacto.



Seguiram-se semanas de recriminações. O que é que as tropas alemães estavam fazendo na Finlândia? Por que os russos estavam mostrando o poderio do exército vermelho em todas as ocasiões possíveis? Por que os alemães manobravam no sentido de estabelecer aliança com a Itália e o Japão? E assim por diante. Mas a ferida continuou aberta até outubro, quando Molotov foi convidado a visitar Berlim, ostensivamente para discutir o colapso iminente do Império Britânico e a partilha dos despojos entre a Alemanha, Itália, Rússia e Japão. Em vista da incapacidade de a Luftwaffe derrotar a RAF na Batalha da Inglaterra, havia no ar muita dúvida de que viesse a ser o Império Britânico partilhado nessa época. De qualquer modo, Molotov estava interessadíssimo nos Bálcãs, e assim falou com rudeza nada diplomática a Hitler e Ribbentrop durante a reunião de Berlim, realizada em grande parte num abrigo antiaéreo, enquanto a RAF passava barulhentamente pelos céus da região. A atmosfera, que segundo o Pravda era “animada e amistosa”, na verdade foi frígida e provocou a famosa pergunta de Molotov: “Se vocês estão assim tão certos de que a Grã-Bretanha está derrotada, o que estão fazendo aqui neste abrigo?” A reunião terminou sem que se chegasse a um acordo, retornando Molotov a Moscou, a 14 de novembro de 1940.



A flagrante descortesia de Molotov para com Hitler teve amargo efeito sobre a megalomania do Führer. Ainda que tudo aconselhasse o adiamento da realização do desejo que tinha de esmagar a União Soviética, é de duvidar que ele tivesse tolerado mais um atraso após a reunião com Molotov e Berlim. Mas, na verdade, não havia necessidade de atraso. Seu objetivo fundamental em relação à Rússia, revelado quase que casualmente na conferência de 22 de agosto de 1939, recebera forma operacional numa sessão de planejamento secreto realizada em Bad Reichengall a 29 de julho de 1940. A França caíra e a Operação Leão-Marinho, plano para invadir a Inglaterra, fora abandonada devido à incapacidade de a Luftwaffe conquistar o domínio dos céus sobre a Inglaterra.



Era chegado o momento de cuidar da “ameaça da União Soviética”. A Inglaterra, mesmo que na realidade não tivesse sido reduzida a pó, podia ser posta de lado como inimigo eficiente, ao passo que a França, à parte alguma resistência simbólica oferecida pelo arrivista De Gaulle, estava completamente vencida. O ataque à Rússia ganhara conotação diferente de desvio perigoso de tropas para uma segunda frente. Fazia-se necessário apenas elaborar um plano minucioso para a invasão. As linhas gerais do plano, denominado Operação estrutura Leste, foram traçadas em Bad Reichengall e entregues ao Alto Comando para elaboração, recebendo aí o novo codinome - Barbarossa.



O nome era característico da fixação insana de Hitler nas lendas teutônicas. Barbarossa - quer dizer Barba Ruiva - era o patronímico de Frederico I, o rei da Alemanha no século XIII. Ele morreu em 1190 e foi sepultado numa caverna, na Turíngia, com seus cavaleiros. A lenda diz que ele está sentado a uma mesa de pedra, esperando para despertar do seu sono terreno - o que acontecerá quando sua barba tiver crescido suficientemente para dar três voltas completas pela mesa. Ele então libertaria a Alemanha da escravidão e a conduziria à conquista do mundo. Lendas idênticas estão ligadas a Mansur, o sacerdote muçulmano, Artur da Távola Redonda, Desmond de Limerick e D. Sebastião de Portugal, todos aparentemente dependendo das suas barbas para retornar à vida e conduzir seus países à dominância. Evidentemente, esses conquistadores se empenharão numa refrega, se suas barbas completarem as voltas à mesa ao mesmo tempo.



Desnecessário dizer que o povo russo fora completamente tranqüilizado quanto ao sucesso da reunião de Berlim, em novembro. Nos dias 13, 14 e 15, o Pravda não falou de outra coisa. Sem dúvida nunca foi publicada tanta besteira sobre atmosferas de cordialidade, importância política, recepções festivas, multidões entusiasmadas e despedidas calorosas; raramente foram tão otimistas as verdadeiras causas de uma reunião. As notícias do fracasso de Molotov em obter qualquer explicação de Hitler sobre a ocupação dos Bálcãs ocidentais por tropas alemães eram perturbadoras demais para ser divulgadas. O mês de dezembro passou e 1941 começou com os jornais estampando freqüentes e ardorosas referências à confiança que o Camarada Stalin depositava no futuro. A 11 de janeiro de 1941, o Pravda anunciou alegremente a assinatura de um amplo Acordo Comercial Germano-Soviético. “Ele estabelece um volume muito maior de comércio do que o realizado no período anterior. A URSS. enviará matérias-primas industriais, produtos petrolíferos e alimentos, particularmente cereais. A Alemanha nos enviará equipamento industrial. O acordo representa um grande passo à frente”. Na verdade representou - para os alemães, que sem dúvida acharam muito satisfatório armazenar cobre, manganês, cromo, madeira, petróleo e algodão russos que em breve seriam usados na Operação Barbarossa. O equipamento industrial que devia ser enviado em troca parece que jamais chegou a ser entregue.



Durante os meses seguintes, a situação na Rússia foi obscurecida pela atitude misteriosamente ambivalente de Stalin. Alexander Werth, em Rússia at War, diz que Stalin deixou claro, numa recepção, realizada no Kremlin, oferecida aos oficiais recém-graduados do exército, que “não se pode ignorar a possibilidade de sermos atacados em futuro próximo pela Alemanha”, que o exército vermelho estava mal equipado para enfrentar tal ataque e que se deveria utilizar todos os meios diplomáticos possíveis para adiar o ataque até 1942. Isto foi a 5 de maio de 1941. A 14 de junho, ele despachou um comunicado negando que a Alemanha tivesse feito quaisquer exigências a URSS, que aquele país estava “cumprindo corretamente as condições do Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético”, que os movimentos de tropas alemãs nos Bálcãs não tinham qualquer importância para as relações entre os dois países, e que os amplos movimentos de tropas russas que se estavam verificando destinavam-se unicamente a treinamento. Esse comunicado destinava-se indubitavelmente a acalmar a Alemanha e a adiar o ataque. Evidente que ele não consegue qualquer efeito. O gatilho da Operação Barbarossa foi apertado às 03:00h de 22 de junho e as tropas alemãs reunidas ao longo da fronteira deram início ao ataque. Às 05:30h, o Conde Werner von der Schulenburg, embaixador da Alemanha em Moscou, compareceu ao gabinete de Molotov para comunicar-lhe que seu país decidira atacar a Rússia por causa da concentração de tropas soviéticas ao longo da fronteira. Era o método alemão familiar: guerra sem ultimato, sem declaração prévia, sem justificativa razoável.



Os três feldmarechais que dirigiam a invasão eram Ritter von Leeb, no norte, Feodor von Bock, no centro, e Gerd von Rundstedt, no sul. Cada qual tinha um Grupo de Exércitos sob seu comando, e o Grupo de Exércitos Norte, de von Leeb, recebeu “a tarefa de destruir as forças inimigas que lutavam na área do Báltico e privar a esquadra soviética das suas bases através da ocupação dos portos do Báltico e, posteriormente, pela eliminação de Leningrado e Kronstadt. Para cumprir tal tarefa, o Grupo de Exércitos Norte penetrará a frente inimiga com seu peso principal na direção de Dünaburg e avançará sua poderosa ala direita de tropas motorizadas para cruzar o Duna o mais depressa possível e penetrar a área a nordeste de Opochka, com o objetivo de impedir a retirada de forças inimigas da área do Báltico para o leste e criar o requisito prévio para outro avanço rápido na direção de Leningrado”.



Para realizar isso, von Leeb dispunha de meio milhão de homens, em 30 divisões seis delas blindadas e motorizadas - e uma esquadra aérea de 430 aviões. “Leningrado e Moscou têm se ser arrasadas e tornadas inabitáveis”, disse-lhe Hitler. “Do contrário, a população terá de ser alimentada no inverno. A força aérea as arrasará. Os ninhos de bolchevismo têm de ser destruídos. Isto será um desastre nacional para os russos”. Von Leeb respondeu que obrigaria Leningrado a render-se até 21 de julho. “No que me toca, Führer, Leningrado já é uma cidade de morte e desespero”.



As ordens emanadas do gabinete de Hitler não previam qualquer espécie de sítio. Os sítios não funcionam bem com os modernos métodos de guerra. Na verdade, o sítio em sua forma original, como um ataque direto contra as portas de uma cidade com aríetes e outros engenhos de força rompedora, começou a perder eficiência quando se tornou possível disparar mísseis por sobre as muralhas. A outra forma de sítio, pela qual os defensores se uma cidade, de um prédio, ou mesmo de um país inteiro, são levados à rendição pela fome, continuou sendo útil por muito tempo. Mas pode transformar-se numa prolongada e dispendiosa forma de levar à lona o inimigo, pois o sucesso não é inevitável; o espírito humano muitas vezes permanece inquebrantável, apesar da fome do corpo. O bombardeio aéreo e de artilharia normalmente é mais rápido e mais barato; mas exige condições que o tornem possível. Quando essas condições não predominam, o espectro da fome, pelo menos, reveste sempre a figura lúgubre do emissário do atacante que não logrou vencer os defensores pelo massacre rápido promovido pelos canhões e aviões. Na história da guerra há inúmeros exemplos de cerco deste tipo, aplicados como recurso extremo. Muitos deles funcionaram, muitos, porém, fracassaram. O sítio de Leningrado fracassaria.


A cidadela



Pedro, o Grande, homem de inexcedível coragem e determinação, fundou a cidade em 1703. Na época, ele estava em guerra com os suecos, para arrancar-lhes o domínio do Báltico e, ao construir a cidade, era seu desejo livrar a Rússia das tradições orientais, nela implantando os métodos industriais europeus. Viajara muito para satisfazer a curiosidade insaciável, passando muito tempo na Inglaterra e na Holanda, onde estudou construção naval e navegação e absorveu alegremente a ambiência da cultura ocidental; era dotado de enorme conhecimento prático e cultura, pois trabalhou incógnito em estaleiros, oficinas, na indústria de construção e instituições várias, assimilando tudo quanto ambicionava aprender. Quando retornou, em 1698, levou consigo cerca de quinhentos médicos, engenheiros, astrônomos, artífices, artilheiros e artesãos de todos os tipos para instruir seu povo.



Dois anos depois, em 1700, ele aliou-se aos reis da Polônia e Dinamarca e desfechou um ataque à Suécia, sendo um dos seus primeiros objetivos parte do território sueco de Íngria, “Onde erguerei uma cidade que será a janela da Rússia para a Europa”. Não lhe foi difícil apoderar-se da aldeia ali existente, onde havia um velho forte sueco. Com a construção da cidade deu-se, entretanto, coisa muito diferente.



A escolha daquele local foi influenciada por motivos de ordem militar, posto que, dominando o Golfo da Finlândia, dispunha de boa situação para opor-se a qualquer ataque marítimo; esteticamente, a escolha deveu-se ao desejo do fundador de construir uma cidade onde, como em Veneza, predominasse o elemento líquido, e água, certamente, é o que ali não falta, por ser onde se localiza o delta do Neva. O rio divide-se em três, pouco antes de desembocar no Golfo; o terreno é baixo e há em abundância pântanos, lagos e cursos de água. No inverno, tudo isso congela totalmente, e o degelo da primavera traz consigo imensas enchentes. Nada disso, entretanto, desencorajou Pedro. Seus engenheiros e arquitetos, num rasgo de visão criadora, informaram que a cidade teria de ser construída sobre estacas enterradas profundamente nos pântanos. Milhares de camponeses foram levados para a Íngria (a região circunvizinha) e postos a trabalhar - talvez a expressão justa seja “foram forçados a trabalhar como escravos”. E trabalharam como os construtores de túmulos do Egito. Os blocos de pedra eram transportados, de pedreiras situadas a centenas de quilômetros de distância, em pequenas embarcações desde a foz do Neva, porque um banco de areia impedia a entrada de navios no rio. Quilômetros de florestas que orlavam os pântanos e se estendiam para o leste tiveram de ser derrubados. Pontes provisórias e pontes flutuantes tiveram de ser construídas sobre os alagados e tributários e as estacas foram enterradas profundamente na lama. Um autor contemporâneo disse que “Os ossos dos servos que morreram de exaustão são as fundações da cidade de Pedro”. E disse a verdade. Os trabalhadores, obrigados a jornadas excessivamente penosas, morreriam às centenas nos invernos rigorosos; mas se é verdade que seus ossos foram incluídos nas fundações da cidade de Pedro, é igualmente verdadeiro que a antiga memória do suplício a que foram submetidos esses homens foi incluída nas fundações do bolchevismo.



A cidade era realmente bela. A velha cidadela e a nova catedral formavam o seu coração, e as avenidas e bulevares foram abertos concentricamente em torno delas. Pontes, torres, galerias e igrejas erguiam-se majestosamente dos pântanos, colunatas e obeliscos davam-lhe elegância, as fachadas de mármore dos palácios brilhavam à luz do norte. Pedro chamou-lhe São Petersburgo - A Cidade de São Pedro - e disse: “Sou Imperador duma nova capital da Rússia”. Quando o escritor francês Diderot lá esteve, em 1774, comentou secamente: “Uma capital na fronteira de um país é como um coração na ponta de um dedo ou um estômago no calcanhar”, e este comentário sobre a vulnerabilidade da cidade se mostraria perfeitamente verdadeiro. Mas São Petersburgo tornou-se famosa por sua beleza. “A magnificência de todas as cidades da Europa não se iguala a de São Petersburgo”, disse Voltaire, mas acrescentou sotto você, “embora o local onde foi construída sirva melhor para covil de lobos e ursos do que para morada de homens”.



Talvez fosse inevitável, mas, não obstante, chega a ser irônico que a capital da Rússia czarista viesse a tornar-se o berço da revolução de 1917. pelo fim daquele ano, seu nome evocativo foi castrado para Petrogrado – o patriotismo guerreiro dera-se conta de que o nome São Petersburgo era de formação germânica: Petrogrado (Cidade de Pedro) era denominação puramente russa. Sua importância fora diminuída pela mudança do governo bolchevista para Moscou em 1918. Com o completo desaparecimento do regime czarista e com a morte de Lenine, em 1924, a cidade passou a chamar-se Leningrado e teve sua importância restabelecida - embora como cidade industrial. Mas suas indústrias eram sobretudo de papel, gráfica, de roupas, madeireira, de pesca, curtumes, de vidro, de sabão e produtos químicos. A cidade nunca fora e nunca se tornaria auto-suficiente; o carvão, o óleo, a lenha e a maior parte do alimento ali consumido tinham de ser trazidos por mar e ferrovia e, nos longos invernos, seus 3 milhões de habitantes usavam lenha no aquecimento das casas.



Quando a guerra contra a Finlândia começou, em 1939, a cidade, estando na linha de frente, foi imediatamente posta na defensiva. Deu-se prioridade aos movimentos de tropas e ao abastecimento dessa gente. Desse modo, a população civil da cidade começou a enfrentar dificuldades para obter alimento. Tendo-se desencantado os leningradenses com a liderança e a proclamada invencibilidade do exército vermelho, o moral do povo caiu muito. Nada abate tanto o moral da população do que as filas para a obtenção de alimentos que podem ou não ser distribuídos, enquanto em casa o rádio grita elogios à liderança do Comintern e de um exército que, na verdade, sofre derrotas e perdas de homens em grande quantidade diante de forças bem menos volumosas, mas bem melhor dirigidas.



Vingativamente, os leningradenses escamotearam alimento e prejudicaram o sistema de racionamento e, embora não fossem ativamente hostis à administração da cidade, estavam muito longe de ser cooperativos. Quando os finlandeses foram derrotados, em março de 1940, cerca de 50.000 habitantes da cidade haviam morrido, os estoques de alimentos e de combustíveis estavam perigosamente reduzidos, enquanto os órgãos de assistência médica que os líderes e oficiais locais do partido tentavam fazer funcionar permaneciam emperrados em virtude dos ressentimentos e da indiferença que a todos contagiaram. A pergunta que Molotov fez a Hitler – “Se a Grã-Bretanha está derrotada, o que estamos fazendo neste abrigo?”- tinha o mesmo sabor da que os leningradenses, entre o fim da guerra com a Finlândia e o começo da invasão alemã, fizeram: “Se as relações germano-soviéticas são tão firmemente cimentadas em amizade, por que nos apressarmos em fazer cursos intensivos de defesa civil e em nos entrincheirar?”A pergunta era provocada pelo cansaço diante de tanto cinismo demonstrado pela liderança política, o que agradou imensamente a Hitler, que foi informado disso pelo Serviço de Inteligência.



A meio-dia de 22 de junho de 1941, Leningrado ouviu a primeira comunicação oficial da invasão. Molotov falou:

“Esta manhã, sem prévia declaração de guerra e sem qualquer exigência feita à União Soviética, tropas alemães atacaram nosso país e bombardearam, pelo ar, Zhitomir, Kiev, Sebastopol, Kaunas e outros lugares. Há mais de 200 mil mortos e feridos. Idênticos ataques aéreos e de artilharia também foram feitos de áreas da Romênia e da Finlândia”. E prosseguiu falando de perfídia, de escravização, de esmagamento do inimigo etc. - palavrório convencional que o povo deve ter recebido com estupefação, pois até uma semana antes fora informado oficialmente de que a Alemanha era um país amigo e que não guardava ressentimentos contra o povo russo e ambições sobre território soviético (independente da evidência). Especialmente em Leningrado, a 800 km da fronteira, onde não houve pânico e, até então, nenhuma baixa, mas onde os meses que medearam entre o fim da guerra com a Finlândia e a invasão haviam revelado provas muito claras de despreparo e vacilação.



Contudo, a hora não comportava recriminações. Deveria ter sido o momento para o líder despertar a imaginação do povo. Mas Stalin permaneceu inexplicavelmente silencioso por quase duas semanas. Os leningradenses não esperaram que lhes despertassem a imaginação: seu instinto de conservação supriu a falta da orientação que os líderes lhes deviam fornecer. Correram aos centros de mobilização, e foram envolvidos na confusão que ali reinava, por puro despreparo. O Soviete Supremo havia decretado mobilização geral e estado de sítio, mas o Soviete da Cidade de Leningrado é que devia incumbir-se dos detalhes locais, o que demorou cinco dias, pois só a 27 de junho é que o esquema de mobilização do povo e de ampliação das defesas da cidade começou a funcionar. Durante esses cinco dias, muita comida foi guardada - como era fatal acontecer com um povo que sabia por experiência própria até onde os estoques de víveres se tinham reduzido, pois experimentara privações determinadas pelas prioridades militares.



A administração cuidou do aprovisionamento num decreto de 27 de junho, que previa pena muito severa para aquele que transgredisse as suas disposições. E os leningradenses passaram imediatamente à defesa da cidade. E foi bem a tempo.



O avanço



O registro feito por defensores de qualquer praça pegados de surpresa é sempre confuso demais para que se possa tirar algum sentido histórico dele. Os russos não tiveram tempo de levá-lo a efeito no dia em que os alemães os atacaram, e quando houve oportunidade para isto, muitos dos que poderiam tê-lo feito estavam mortos. Alan Clark, em seu livro Barbarossa, diz: “Os guardas da fronteira, despertados pelo ruído das lagartas dos tanques, eram mortos quando deixavam apressadamente, seminus, os alojamentos”. Os documentos e registros existentes a respeito do que se teria passado naqueles momentos falam de tanto pânico e desordem que qualquer análise se torna impossível. Não que a análise seja particularmente necessária. Uma sinopse atende bem a nossa curiosidade. E a apresentação dos fatos, por mais resumida, não poderia deixar de ressaltar a força do golpe vibrado contra uma defesa completamente descoordenada.



No norte, onde o 16o, o 18o Exércitos e o 4o Exércitos Panzer, de von Leeb, estavam encarregados de capturar Leningrado e Moscou, houve, por exemplo, ataques de contenção impossível, como aqueles em que duas divisões de infantaria e três de tanques alemãs foram lançadas contra uma única divisão russa de fuzileiros - e isto numa frente de apenas 40 km. A Luftwaffe, em apoio, metralhou e bombardeou até a destruição final toda a força aérea soviética no ocidente antes mesmo que os aviões que a compunham pudessem levantar vôo (seu comandante, general Rychagor, foi submetido a conselho de guerra e condenado à morte, considerado que foi ineficiente). E, naturalmente, as estradas estavam entupidas de gente que recuava das cidades fronteiriças. Em muitos casos, ela desviou o curso de forças soviéticas, levando-as para armadilhas preparadas pelos invasores. Estes, naturalmente, não observavam detalhes como desvios de rumo por causa dos refugiados civis; eles simplesmente os metralhavam e iam em frente.



Às 07:00h Hitler declarou o seguinte ao povo alemão, pela boca de seu chefe de propaganda, Goebbels: “Povo alemão! Condenado a meses de silêncio, posso agora falar livremente. Teve hoje início uma marcha que se compara, por sua extensão, à maior que o mundo já tenha visto. Decidi hoje, uma vez mais, depositar nas mãos de nossos soldados os destinos do Terceiro Reich. Que Deus nos ajude, especialmente nessa luta”.



A julgar pelo exame da frente de batalha no final de 22 de junho, não havia muita necessidade da ajuda de Deus. De um extremo a outro da linha de invasão, os três Grupos de Exércitos alemães haviam avançado praticamente sem obstáculos. Registraram-se tentativas corajosas, feitas por comandantes soviéticos, de resistir firmemente, de desfechar contra-ataques e de deslocar a esquadra aérea soviética sediada na Rússia Central para substituir a que fora destruída antes que pudesse decolar. Mas todos os esforços por eles feitos frustraram-se pela confusão reinante, pelos efetivos colossais dos invasores, pelo brilhantismo da estratégia que puseram em prática e, sobretudo, pela desorientação de Stalin, aparentemente ainda vivendo no paraíso de trouxas criado pelos Pactos de Não-Agressão, que havia ordenado que não se dirigisse fogo de artilharia contra o inimigo e que os aviões soviéticos limitassem suas atividades a “reconhecimento aéreo a 56 km da fronteira inimiga”.



Há registros de indiscutível autenticidade que provam que alguns comandantes russos não foram surpreendidos pela invasão, como a história oficial russa quer dar a entender. Eles são citados em Rússia at War, de Werth. Mas, conhecer os fatos é uma coisa, e portar-se com acerto diante deles é outra muito diferente. Os informes do Serviço de Inteligência, que diziam que tropas alemãs se agrupavam ao longo da fronteira, a partir de abril, chegavam a Stalin através da cadeia de comando, e eram ignorados ou considerados perigosamente subversivos.



Essa indiferença e a incapacitação dela decorrente contribuíram muito para os grandes sucessos iniciais dos invasores. Passada uma semana, a defesa da fronteira russa havia sido superada. No norte, para deter o avanço para Leningrado, o General Pavlov tentou, em desespero de causa, parar os Grupos Panzer de von Leeb com canhões que nem sequer tinham munição perfuradora de blindagem. Nos pânicos esforços que fez com tal objetivo, lançou em batalha, como o mais inexperiente estudioso de estratégia militar podia ver facilmente, unidades e unidades sem a menor possibilidade de recuperar um centímetro sequer do terreno perdido, e que todos iam para a morte certa, sem se darem conta disso, provavelmente movidos mais pela idéia de salvar a pele que pelo ato consciente de cometer ação heróica. De nada, porém, lhe valeu tanto esforço, tanto sacrifício. Como Rychagor, ele foi fuzilado por incompetência.



Pelo fim de junho, o grupo de Exércitos Norte chegara à linha do Rio Duna, a um terço do caminho para Leningrado, onde se reagrupou. Uma semana depois, ele havia avançado até a chamada “Linha Stalin”- uma série de fortificações inadequadas que iam desde Pskov, na extremidade sul do Lago Peipus, até Odessa. A “Linha” foi rompida com muita facilidade e a 8 de julho os alemães do grupo de Exércitos Norte capturaram Pskov. Só faltavam 230 km para chegarem a Leningrado. Envaidecidos com o sucesso, eles pararam para respirar. Seus feitos eram extraordinários: em duas semanas, haviam ocupado, com perdas relativamente insignificantes, uma área incrivelmente grande da Rússia Ocidental. No dia do aniversário do Chefe de Estado-Maior, 30 de junho, o Führer os visitou e eles ouviram sua arenga sobre o futuro império alemão, enquanto comiam morangos com creme numa mansão outrora pertencente a um latifundiário russo e que era extravagantemente decorada com coroas de louros e rosas vermelhas. A área por eles dominada estava juncada de cadáveres de russos. Aparentemente, eles tinham toda razão de contar com os ovos antes de a galinha pô-los.



Mas a 3 de julho Stalin, finalmente, rompera o silêncio em que se fechara. Dirigindo-se ao povo na tarde daquele dia classificou de “pérfido” o ato cometido pela Alemanha nazista. Resmungou, em aparente inocência, sobre o disposto no Pacto de Não-Agressão assinado, nomeou algumas das imensas áreas agora em Mãos alemães (“...Lituânia, parte da Ucrânia, Letônia, parte da Rússia Branca...”), falou dos planos de Hitler de transformar os russos em “escravos dos príncipes e barões alemães”, agradecer à Grã-Bretanha por se colocar ao lado da União Soviética (Churchill ficara do lado de Stalin na noite de 22 de junho) e terminou o preâmbulo da sua transmissão com uma frase significativa de grande atenuação da verdade: “Uma séria ameaça paira sobre nosso país”.



Ele passou então a pronunciamentos mais emocionantes, inclusive à sua famosa instrução sobre a política de “terra arrasada”. O discurso foi breve, hesitante, feito em tom baixo, e nada retórico; ele o iniciara com as palavras: “Camaradas, cidadãos, irmãos e irmãs... Eu lhes estou falando, meus amigos!” o que prendeu a atenção do povo e fez que desaparecesse de sobre ele a sombra dos expurgos dos anos 30 - que, de certo modo, produziu tanto terror na Rússia quanto Hitler inspirou na Alemanha - transformando-o num líder aceitável. Embora pareça insípido e cheio de chavões, evidentemente era o discurso certo para o momento certo. Poder-se-ia dizer que as sementes da vitória germinaram na “terra arrasada”.



Os comandantes alemães, brindando seu Führer e fazendo uma pausa enquanto reagrupavam suas forças para um avanço napoleônico para leste, na direção de Leningrado e Moscou, e “para esmagar os ninhos do Bolchevismo”, tiveram o destino selado a partir do momento da transmissão radiofônica de Stalin. Seria fútil pretender que apenas isso pudesse ter mudado a situação; mas não há dúvida de que a palavra de Stalin foi o eixo em torno do qual girou a primeira crise dos exércitos alemães.



O esboço original da Barbarossa era direto e simples: “Destruir o grosso do Exército Soviético localizado na Rússia Ocidental por meio de penetrações profundas feitas por pontas-de-lança blindadas; impedir a retirada de elementos aptos para combate para o interior russo.



A segunda parte do plano era mais importante. Os outros invasores da Rússia, Carlos XII, da Suécia, e Napoleão, tinham descoberto, em detrimento seu, que as grandes distâncias implicadas na perseguição ao exército russo para o leste e o estiramento de suas linhas de comunicação, tornavam impossível uma rápida ocupação da Rússia. O país era grande demais. Sempre havia, mais para leste, algum lugar para onde recuar e de onde revidar. A campanha de Napoleão, de 1812, provou isso. Clausewitz, o teórico da guerra, que lá estivera, disse que a única medida capaz de solucionar o problema da guerra na Rússia era a completa destruição das forças defensoras por meio de cerco e bombardeio, regimento por regimento. Logo, a Diretiva de Hitler, de “impedir a retirada para o interior dos elementos aptos para batalha”, estava de acordo com Clausewitz.



Mas seus comandantes não haviam executado isto. Há evidências de que não quiseram fazê-lo, de que eram totalmente favoráveis à ocupação triunfal de Leningrado e Moscou - depois do que, segundo supunham, toda a Rússia se deitaria a seus pés. As forças russas responsáveis pela defesa da frente ocidental do país sumiram diante da carga dos atacantes. É possível, embora praticamente improvável, que fosse deliberada a desorganização demonstrada pelos russos, assim como a maneira visivelmente errada com que Stalin tratou toda a situação militar antes de 22 de junho fora um truque sutil para atrair o inimigo. A verdade, no entanto, é que os alemães não impediram a retirada para o interior de elementos aptos para batalha”.



Von Leeb , von Bock e von Rundstedt por certo sabiam que o exército vermelho era muito mais forte no papel do que de fato (embora fosse enorme, do ponto de vista de quantidade, e seu equipamento era em grande parte obsoleto), mas também haviam subestimado o seu poder de recuperação. A exultação, o fletir de músculos quando nos umbrais da conquista completa deveriam ter sido um pouco mais moderados: assim, eles não teriam parecido tão tolos mais tarde. Eles se teriam livrado das conseqüências das diatribes do seu Führer, que se não estivesse com tanta pressa em obter vitórias políticas e geográficas da importância de Leningrado e Moscou poderia ter-lhes permitido executar a doutrina clausewitziana tal como ordenara.



Contudo, o próprio Hitler vacilava entre o que aconselhavam seus generais e a ânsia de que as forças russas ainda existentes a oeste da linha que ia de Narva até o Mar Vermelho fossem completamente aniquiladas antes que seus exércitos rumassem mais para leste. Na diretiva 53, ordenava ele especificamente que os 5o, 6o e 12o Exércitos - que se mostravam espantosamente resistentes, apesar das imensas perdas e contínuas retiradas - deveriam ser dizimados antes do prosseguimento do avanço para Leningrado. Estabelecia também a Diretiva que o grupo de Exércitos Centro lançasse sua infantaria na direção de Moscou. Como esses dois movimentos estavam inextricavelmente ligados, devido à disposição das forças que os deveriam executar, a Diretiva era um tanto ambivalente. Era também uma espada de dois gumes, porque, se qualquer dos elementos contraditórios contidos na diretiva saísse errado, o golpe poderia virar-se contra os golpeadores.



De qualquer modo, o problema, como diz Alan Clark, em Barbarossa, “era de esboço simples, mas muito complexo e ardiloso em substância”. Prosseguia a diretiva: “Após os primeiros sucessos, a Wehrmacht estava perdendo impulso, devido, em parte, à questão de suprimento. Alimento e munição, serviços auxiliares, manutenção de maquinaria, tudo isso foi-se tornando gradativamente mais difícil à medida que a frente se ampliava e as divisões se abriam em leque. Os detalhes do plano... já tinham sido superados, e a dispersão dos exércitos aumentava à medida que penetravam mais profundamente ao longo do eixo prescrito para cada um deles, evitando resistência e explorando as debilidades do adversário. Muito distanciados do QG, os comandantes-de-exércitos e comandantes-de-divisão agiam cada vez mais por iniciativa própria, travando, alguns, variadas ações locais, embora sem a necessária coordenação, nas profundezas da retaguarda russa, enquanto colegas seus, por menos móveis e menos afoitos, permaneciam pacientemente nos cercos em torno das partes do exército soviético que haviam sido isoladas”.



O avanço Rússia adentro prosseguiu - ainda que mais lento e contra resistência exasperantemente crescente. Com freqüência, as linhas de comunicação alemãs eram cortadas por efeito da reação de tropas soviéticas surpreendentemente grandes. Os próprios alemães, que vinham promovendo cercos e destruição de tropas russas, passaram a ser cercados também durante todo o tempo e também destruídos, por atividades guerrilheiras desenvolvidas na retaguarda de suas unidades facilitadas pelas difíceis condições do terreno que os alemães enfrentavam. Chegara ao fim a parte mais fácil da incursão pela Rússia. Os alemães teriam de mudar de marcha, mudar de tática, mudar de ponto de vista sobre o conceito da Barbarossa. Era de preocupar.



Os defensores



Os defensores da cidade de Leningrado nada sabiam dos objetivos da Barbarossa, originais ou modificados. Sentiam que a intenção do inimigo era ocupar ou arrasar a cidade, ao mesmo tempo que eram envolvidos pela confusão administrativa que ameaçava generalizar-se. Eram martelados pela propaganda, humilhados por referências publicamente feitas à não cometida traição de terem deixado de atender na devida oportunidade ao chamado oficial, aturdidos por ordens conflitantes, exaustos de tanto trabalho, isolados de suas famílias, e até da transmissão radiofônica de Stalin, sentindo, enfim, todo o efeito do despreparo em que se encontravam.



Também estavam a braços com as dificuldades criadas com a chegada dos que fugiam dos pontos já batidos pelo invasor, carentes de abrigo, de alimento, já escasso para os habitantes da cidade, de socorros médicos, etc. Leningrado seria ocupada, arrasada ou sitiada. Gradativamente, com o passar de junho, julho e agosto, estas muitas dificuldades isoladas se fundiram nas emoções dos que ali viviam, numa única preocupação: sobreviver.



A 22 de junho, imediatamente após a transmissão, feita por Molotov, da chocante notícia da invasão, o Presídio do Soviete Supremo ordenou a mobilização geral e proclamou a Lei Marcial em todas as cidades. Por conseguinte, o Tenente-General M. M. Popov, comandante da guarnição de Leningrado, tornou-se, pelo menos teoricamente, o senhor, o árbitro de todas as decisões a serem ali tomadas. Na prática, porém, o general trabalhava ligado ao secretário do comitê do partido da cidade, A. A. Zhdanov, e com o Presidente do Soviete da cidade (isto é, do Conselho), P. Popkov.



Contudo, as ordens administrativas desses três camaradas foram vetadas pelo presídio; em Moscou, onde não escapavam aos olhos de Stalin, que freqüentemente as revogava ou alterava de acordo com as teorias vigentes no órgão de coordenação; como, por exemplo, quando ele adiou (mas finalmente permitiu) a produção de garrafas para coquetéis Molotov alegando que a fábrica que as produzia “estava servindo melhor nossos irmãos e irmãs” continuando a fazer vasilhames para acondicionar “brandy” de baunilha. Mas, como não havia “brandy” de baunilha para engarrafar, esta decisão era até ridícula.



Durante alguns dias, após 22 de junho, os efeitos dos decretos de Moscou foram mínimos. Popov parecia não saber como aplicar a lei marcial. Somente depois que a primeira ordem do comandante da guarnição de Moscou foi publicada (o que se verificou três dias após o início da invasão) é que Popov a copiou literalmente, aplicando-a a Leningrado, onde entraria em vigor no dia 29. A ordem impunha toque de recolher da meia-noite às 04:00 h, limitava o período de funcionamento de restaurantes e lugares de diversão e fixava as horas para o começo do trabalho - que não diferiam das horas normais. É possível que o atraso verificado na aplicação da medida e a sua brandura tivessem apenas o objetivo de evitar o pânico. Se assim era, os leningradenses não permaneceram acalmados durante muito tempo, embora não se possa dizer que tivessem entrado em pânico. Ordens começaram a chover sobre eles. As provindas de Moscou, esclarecendo-os sobre como proceder diante da situação, freqüentemente se chocavam com as emanadas de Popov, Popkov e Zhdanov.



Simultaneamente com a palrice marcial de Popov, a 27, o Soviete da cidade mobilizou “toda a população da cidade para o trabalho de defesa”. Depois de especificadas as obrigações do povo, passaram a dar as exceções - mulheres grávidas, doentes, os que já estava no trabalho de defesa e os que se encontravam fora dos limites de 15 a 50 anos. Nesse mesmo dia, porém, o comitê do partido chamou 200 mil homens para formar um exército popular a ser recrutado imediatamente e, com apenas algumas horas de treinamento, despachado para a frente de batalha. Estes eram apenas duas das muitas ordens que faziam exigências conflitantes a uma população já de si não muito elástica, por mais ansiosa que estivesse em mostrar-se grata aos patrões e evitar o que era eufemisticamente chamado de “privação da liberdade”. Pouco depois foi determinado o recrutamento de 15 mil guerrilheiros para operar atrás das linhas alemãs e para duplicar a força da Defesa Civil da cidade, então com 14 mil homens.



Era tudo tão confuso, que nos primeiros dias da invasão, enquanto os alemães ainda se encontravam a quilômetros de Leningrado e o serviço de informações enchia o ar de contraditórias notícias sobre as atividades do exército vermelho, os leningradenses preferiam obedecer ao comando que no seu entender melhor lhes servia - assim como sucedeu na Inglaterra, quando muitos correram a ingressar na Guarda Nacional, tentar fazer com que seus empregos fossem rotulados como “ocupação reservada’, tornarem-se executivos da Defesa Civil, ou, de uma forma ou de outra, ingressar no que consideravam ser ninhos bem protegidos - erroneamente, como verificaram mais tarde.



A série de medidas conflitantes era um sintoma da inquietação que ia pela alta direção do país. Kruschev admitiu isso após a guerra. “Nosso serviço de divulgação e nosso trabalho político-educacional eram caracterizados pelo tom de bravata: ‘Quando um inimigo viola o sagrado solo soviético, para cada golpe seu responderemos com três golpes e o combateremos em seu próprio solo e o venceremos sem sofrermos muitos danos...’ A ciência e a tecnologia soviéticas produziam excelentes modelos de tanques e peças de artilharia antes da guerra. Mas a produção em massa não estava organizada e só às vésperas da guerra é que começamos a modernizar nosso equipamento militar ... A situação da artilharia antiaérea e antitanques era particularmente ruim, porque não dispúnhamos de produção organizada nem de munição apropriada. Muitas regiões mostraram-se indefensáveis tão logo foram atacadas, porque as armas antigas haviam sido retiradas e as novas ainda não tinham sido instaladas. Infelizmente isto também se aplicava às armas portáteis. No começo da guerra nem sequer tínhamos quantidades suficientes de fuzis para armar o potencial humano mobilizado.”



O sagrado solo soviético fora bastante violado sem que se verificasse, os três golpes para cada um em retaliação. As diretrizes freqüentemente baixadas ao povo eram de tal ordem impressionantes que não seria lícito culpa-lo por acreditar na eficiência da cúpula que o dirigia. Assim é que a enorme frustração que os leningradenses experimentaram nas duas primeiras semanas de invasão, quando sentiram que não estavam de fato preparados para o choque com que não contavam, foi logo dissipada pela medida de impacto então tomada pelos dirigentes: a convocação quase geral para o serviço de defesa.



Essas clarinadas, soando simultaneamente, eram uma verdadeira cacofonia. Naturalmente, a tônica era a defesa, feita em termos de valas antitanques, fortificações e demolições. Nos primeiros dias da invasão pouco mais foi feito que proteger os prédios com sacos de areia, cavar trincheiras e construir abrigos antiaéreos. Certa perplexidade ainda persistia. “Era verão. Às vezes víamos aviões voando alto e ouvíamos o soar ocasional e distante da artilharia, mas era quase inacreditável que os nazistas estivessem ali, na Rússia.” Mas, a 8 de julho Pskov foi capturada, tornando-se então suficientemente claro que os nazistas não sós estavam na Rússia como também, praticamente, em Leningrado. É verdade que a velocidade com que avançavam caíra bastante, porque precisavam reagrupar-se. Nada, porém, podia negar que a força e a mobilidade que demonstraram seriam capazes de leva-los a desfechar um ataque direto contra acidade dentro de dias, se não de horas.



De repente, as turmas de defesa mobilizadas viram-se reunidas nos parques, nos jardins e nas praças, equipadas com os mais variados e precários instrumentos que puderam encontrar, e seguiram a pé, em trens e caminhões abarrotados para os locais que lhes foram determinados.



O mais distante destes corria paralelo ao rio Luga, cerca de 80 km a sul-sudoeste da cidade. Do lado inimigo do rio, por uma distância de 160 km, casamatas, dentes-de-dragão e fossos antitanques foram construídos e escavados com frenética rapidez por 300 mil pessoas - em duas semanas, segundo fontes soviéticas. Ao mesmo tempo, mais próximo da cidade, anéis mais ou menos concêntricos de defesas estavam sendo erguidos - com os internos não passando de simples barricadas nas ruas feitas com madeira. Havia elevada cota de mulheres e adolescentes entre os trabalhadores. Eles revezavam-se em turnos de trabalho de doze horas, suando cruelmente, misturando concreto, cavando até a exaustão. Quando vencidos pelo cansaço, ficavam ali mesmo onde caíam, tratados com rude ternura pelos mais próximos - que, por sua vez, poderiam tombar a qualquer momento e receber o mesmo tratamento dos que se recuperavam. À medida que cada projeto ficava pronto, eles eram levados a executar outro, recomeçando tudo, mal alimentados, curvados, enfim, ao peso do tormento a que estavam submetidos.



É impossível dizer com alguma precisão quantas pessoas construíram as defesas de Leningrado. Talvez um milhão. Mas é certo que todas se viram compelidas pelo espectro do desespero que, em poucas semanas, fez que desaparecesse a sensação de segurança que os líderes do Comintern lhes infundiram. Não havia tempo para o julgamento das atitudes dos camaradas da classe dirigente, pois a grande preocupação de todos passou a ser a sobrevivência, preocupação perfeitamente humana, mas como na guerra e no jogo, aceitar a derrota é típico de personalidade perturbada, sem qualquer conteúdo de dignidade. A reação coletiva dos leningradenses - e a dos russos em geral - era invariavelmente de desdém quanto às violações da sua terra, mas não derrotista.



Além dos construtores das defesas havia o opolchénie, o exército popular. Este era, para começar, uma força básica de 200 mil homens e mulheres, recrutados de início dentre voluntários, embora os oficiais do partido que iam às fábricas, às oficinas e escritórios com o objetivo de recrutar voluntários usassem expressões que dificilmente deixavam de sensibilizar quem quer que os ouvisse. “Você parou de surrar sua mulher?” “Você quer ajudar a Rússia?” - eram perguntas que produziam o resultado esperado. Os voluntários acorriam em bandos, muitos deles convencidos de que devido à idade ou defeito físico jamais seriam admitidos senão como soldados meramente simbólicos, mas cuja rapidez em responder ao chamado para o serviço militar impressionaria o inimigo.



Não havia alojamentos suficientemente grandes para acomodá-los todos, enquanto eram escalonados em divisões ou batalhões; porém, mal o eco do chamado à defesa do sagrado solo russo lhes morria nos ouvidos, eles já estavam realmente na linha de frente, defendendo-o. “Defendendo” é exagero, pois não tinham a necessária habilidade, nada sabiam da rotina militar e provavelmente foram um constrangimento para os homens treinados do exército vermelho. Mas foram lançados, sem distinção, nas brechas abertas na defesa e às vezes, pelo simples peso dos números, venciam um que outro posto avançado alemão ou corriam perigosamente para fazer calar uma guarnição de canhão inimiga. Os que não tinham armas eram instruídos a lançar contra o invasor recipientes com água fervente, acercar grupos a eles pertencentes com anéis de querosene em chamas etc. Cerca de 100 mil homens do opolchénie não retornaram. Eles estavam defendendo a cidade que Pedro construíra sobre os ossos dos seus ancestrais, e isso bastava para lhes dar coragem, coisa que na realidade jamais lhes faltou.



Também recrutadas antes que o espantoso relato das ocorrências verificadas nos primeiros dias da invasão houvesse cessado, as unidades de guerrilheiros, cujas guerrilhas e atos de sabotagem punham tontos os alemães, infiltravam-se nas linhas inimigas, destruíam trens de abastecimento, faziam explodir pontes e estradas, plantavam pistas falsas, constituindo-se, enfim, num verdadeiro transtorno para os invasores. Ao contrário do grosso do opolchénie, eles tinham treinamento especializado. De qualquer modo, eram pequenos trabalhadores do partido, membros do NKVD, ou operários civis lotados no QG da guarnição, mas preparados e treinados para o exercício desse tipo de trabalho especializado e perigoso. O número desses elementos cresceu de algumas centenas, organizadas em base nacional quando do início da invasão, para 15 mil; e Leningrado parece ter sido a cidade que entrou com o contingente que gerou aquele enorme aumento. De todas as forças defensivas formadas enquanto os alemães se espalhavam pela Rússia, vindos do oeste, os guerrilheiros foram os que os soldados germânicos mais freqüentemente citavam como empecilhos à execução da estratégia estabelecida.



Naturalmente, havia o exército vermelho, os defensores profissionais do país - uma enorme organização que com facilidade se desorganizava, que somente em agosto começou a resistir com sucesso e, às vezes, inverter o avanço alemão, e isto mais pela tenacidade que pela capacidade de superar o inimigo em estratégia. No tocante a Leningrado, porém, o exército vermelho ainda levaria muitos meses para reunir condições de poder afastar de suas portas o inimigo.



Com o passar do verão, os leningradenses começaram a ouvir e a ver os atacantes se aproximando. A 21 de agosto, eles pararam por momentos o trabalho que executavam para ler a sombria proclamação assinada por Popov, Zhdanov e Popkov:



“Camaradas Leningradenseses! Caros amigos! Nossa amada cidade corre perigo de ataque inimigo... o exército vermelho está-se esforçando valentemente para defender os acessos da nossa cidade... mas o inimigo ainda não foi dobrado, seus recursos ainda não se esgotaram... ele quer destruir nossos lares, inundar nossas ruas e praças com o sangue de vítimas inocentes, ultrajar nossa pacífica população, escravizar os filhos livres da Mãe-Pátria. Isto jamais poderá acontecer. O inimigo está às portas. Ergamo-nos como um só homem em defesa de nossa cidade, de nossos lares, de nossa família, da honra e da liberdade...”



Durante dez dias eles leram e releram aquelas amargas palavras; e a 1o de setembro caiu sobre a cidade a granada que deu início ao seu bombardeio. Leningrado começava a sangrar ao sol brilhante do verão.



O sítio: para o desespero



Naquele domingo um esquadrão de aviões sobrevoou a cidade e lançou um milhão de panfletos. “Homens, mulheres e crianças de Leningrado”, anunciavam eles, “sua cidade está completamente cercada pelos exércitos alemães. O Alto Comando não deseja impor sofrimentos à população civil. Mas a rendição é a única alternativa para o aniquilamento completo ou a fome. Convençam seus líderes de que o bolchevismo tem de ser sacrificado no altar da paz. É melhor ser um súdito saudável dos seus conquistadores incontestes do que um bolchevique faminto!”



Esta informação foi recebida impassivelmente pela população da cidade. A máquina de propaganda do Dr. Goebbels raramente cuspinhava tanto como quando era levada a supor estultamente que bastava soprar para que o moral de suas vítimas caísse. O efeito de bobagens desse tipo foi muito bem sintetizado pelo artista inglês Graham Laidler, num desenho publicado no Punch em 1940. O desenho mostrava um bar de interior, no qual um rádio transmitia a informação, sem dúvida errada, de que “... na Grã-Bretanha, a população civil, confrontada com a ameaça de invasão, encontra-se completamente em pânico...” A audiência, que se poderia considerar representativa da população, consistia de dois caipiras fumando cachimbo e um senhor rural, todos ouvindo série de desgraças e desastres com total tranqüilidade, no rosto apenas ligeiro ar de surpresa.



Naturalmente, a exigência feita aos leningradenses para que se rendessem era um contradição do que pretendiam os alemães. A declaração de von Leeb a Hitler de que transformara Leningrado “numa cidade de morte e desespero” e que a forçaria a render-se até 21 de julho não fora mais que simples golpe para que o chefão reconhecesse nele toda a sua desumana eficiência. Os leningradenses não sabiam de nada disso e von Leeb sabia muito bem que Hitler não tinha intenção de alimentar três milhões de habitantes, mesmo que estes se curvassem abjetamente à sua mercê pela rendição. Eles deveriam ser massacrados, ou dados, com a cidade e tudo, à Finlândia, como gorjeta pela ajuda prestada na campanha do Leste.



Mas o Feldmarechal Mannerheim declarou-se contrário a tal sugestão: “A Finlândia não está interessada em anexar parte alguma da Rússia”, declarou ao Feldmarechal Keitel, que Hitler enviou à Finlândia em missão de persuasão a 4 de setembro. Assim, quando a artilharia de longo alcance iniciou o bombardeio da cidade permanecia ainda o problema: o que fazer com a cidade - ou, mais especificamente, o que fazer com a sua população civil?”



Um dos oficiais do Estado-Maior de planejamento de Hitler, Tenente-General de planejamento Walter Warlimont, formulou o problema, porém o disfarçou ardilosamente como uma solução. Na verdade, ele estava apenas explicando a situação que tinha sido imposta aos exércitos alemães pelo opolchénie e pelas centenas de quilômetros de muralhas de terra, fossos antitanques e barricadas de arame e pelos milhares de casamatas defensivas, que haviam sido desesperadamente construídas em torno de Leningrado nos meses de julho e agosto. Foi isso, além do bombardeio, feito pela marinha russa, no Báltico, contra as tropas Panzer alemãs, emaranhadas nas defesas, e a atividade hostilizadora dos tanques russos que operavam sozinhos ou em pares, que criou a situação que Warlimont agora virava do avesso como um mágico e apresentava sua solução.



“Fechem Leningrado hermeticamente”, ordenou ele em seu memorando, “e depois façam-na tremer pelo terror (isto é, ataques aéreos e bombardeio de artilharia) e pela fome cada vez maior. Na primavera, ocuparemos a cidade, levaremos os sobreviventes para o cativeiro, no interior da Rússia, e arrasaremos Leningrado com cargas de alto explosivo”.



Naturalmente, Leningrado já estava virtualmente isolada pelas suas defesas e pelo exército vermelho, que resistia obstinadamente. Obrigados a sitiar a cidade, os alemães tinham de enfrentar o fato de que seus exércitos empenhados no cerco - já meio cansados pela exaustiva carga disparada pela Rússia Ocidental, e sentindo os efeitos do alongamento de suas linhas de comunicação - estariam ocupados em eliminar “o ninho do bolchevismo”, em vez de avançar triunfalmente para conquistar o resto da Rússia.



Embora Warlimont procurasse dar a impressão de que os seus problemas eram apenas parte de um plano, a situação não deixava de ter suas nuanças humilhantes. Assim como aquela chuva de panfletos que em setembro desabou sobre a cidade ameaçava a todos de norte pela fome, também as folhas que começavam a cair das árvores insinuavam a aproximação do inverno e, por conseqüência, de tempos difíceis para o invasor.



Sem se deixarem abater pela ameaça da fome, os leningradenses dedicaram-se ao balanço do alimento que tinham em estoque. O homem que levantou o problema e ordenou o exame imediato das despensas da cidade foi Dmitir Pavlov, um administrador inteligente, então com 36 anos, grande parte dos quais dedicada ao setor da produção de alimentos. Ele foi nomeado para o controle do comissariado de Leningrado no dia em que o sítio começou.



Naturalmente, como controlador, Pavlov estava sujeito à interferência burocrática normal, tanto do Comitê do Partido de Leningrado como de Moscou. O levantamento que fez do alimento existente e que, muito razoavelmente, levava em conta não só as necessidades da população civil como também as do pessoal da marinha estacionado no Báltico e os do exército vermelho que defendia a cidade, diferia em muito do inventário preparado pelo Comitê do partido da Cidade de Leningrado, que informou a Moscou que havia, na cidade, estoques de farinha para 14 dias, de cereais para 23 dias, de carne para 18 dias, de gordura para 20 dias e de açúcar e confeitos para 47 dias.



As estimativas de Pavlov eram um pouco mais otimistas, porquanto incluía os suprimentos de trigo em grão e de farinha, de gado e porcos em pé, assim como a carne existente nos frigoríficos, e de aves e alimentos enlatados que haviam sido omitidos pelos inexperientes funcionários do Comitê do partido; mas, mesmo assim, suas previsões eram bastante sombrias. Ele calculou que a farinha e o trigo em grão durariam 35 dias; os cereais, 30 dias; a carne, de animais em pé e a já nos frigoríficos, 35 dias; gordura, 45 dias, e açúcar e confeitos, 60 dias. Embora, felizmente, ninguém soubesse disso, na época, esses suprimentos, suplementados pelo que era possível trazer por sobre ou através do território ocupado pelos alemães, durariam 872 dias.



Ainda que “otimista” e embora não fosse possível qualquer prognóstico sobre a duração do sítio, o inventário feito por Pavlov era uma verdadeira sugestão de desastre. Ser informado de que o alimento bastava para menos de dois meses - e consistindo sobretudo de carboidrato - deixava apenas a sensação de que talvez o pior acontecesse. (Embora nada de inesperado ocorresse durante os dois anos e meio de sítio, os dietistas e químicos de Leningrado tiveram que fazer milagres para transformar a comida teórica em real, ainda que repugnante.) Os habitantes da cidade não foram informados de tudo pormenorizadamente. Não era necessário. Os cortes nas rações eram os arautos mais eloqüentes da fome.



A 2 de setembro, anunciado como medida de urgente necessidade, foi implantado o racionamento. Como o próprio Pavlov diz, “A invasão da União Soviética e o avanço rápido do inimigo para o interior do país colocaram a economia nacional sob forte tensão. Os territórios ocupados pelos alemães, até outubro de 1941 produziam 38% do cereal consumido pelos russos, 84% do açúcar, 63% do carvão, 68% do ferro fundido e 60% do alumínio. Criavam-se na área dominada um terço do rebanho bovino e 60% de suínos da pecuária do país. A produção de matérias-primas ficou seriamente afetada, desajustando toda a economia russa, enquanto que, paralelamente, cresciam as solicitações de alimentos, combustível, munição e outros materiais. Ademais, muitas fábricas instaladas nas regiões ocidentais do país, programadas para produzir, com base em planos de tempo de paz, bens de consumo essenciais à economia nacional, tiveram que ser desmanchadas e removidas para o leste. Estabeleceu-se enorme fluxo de máquinas, equipamentos, animais, homens, mulheres, crianças de um lado para o outro do país. Era como se a terra se houvesse erguido e tudo, animado e inanimado, rolasse do oeste para o leste”.



Por volta de 21 de agosto, os alemães haviam cortado a linha ferroviária em Chudovo, rompendo assim a comunicação entre Leningrado e Moscou; no dia 30, eles capturaram o entroncamento ferroviário em Mga, 20 km abaixo da extremidade sudoeste do lago Ladoga. Com isso a cidade ficou sem possibilidade de comunicar-se por ferrovia com qualquer lugar. O terminal ferroviário mais próximo ficava em Tikhvin, a 240 km para leste, e praticamente a única maneira de fazer chegar alimento à cidade era por via aérea, sobre o território ocupado pelos alemães. Desse modo, depois de 30 de agosto, Leningrado, virtualmente isolada de tudo, ficou na dependência de uma precária ponte aérea cujo funcionamento era quase anulado pela aviação alemã e pela artilharia antiaérea inimiga. A única outra rota de abastecimento - sobre a qual falaremos mais adiante - era através do Lago Ladoga. E esta, mesmo antes que o inverno impossibilitasse a navegação, se revelaria muito ineficiente.



Num sentido, o rompimento de todas as ligações ferroviárias com o mundo exterior foi uma pequena bênção. Se ele pôs fim à evacuação em massa de que Pavlov fala, também acabou com a confusão e perda de alimentos que tal movimento causava. “Em meio ao tumulto daqueles dias”, prossegue ele, “muitos erros foram cometidos em rotas ferroviárias. Em vez de despachar trens carregados de alimentos - retirados da área de Pskov antes que o inimigo a ocupasse, a 8 de julho - diretamente para Leningrado, liberando os vagões para outras cargas, enquanto o alimento era armazenado para as reservas da cidade, muitos trens foram mandados para lugares onde cairiam em mãos inimigas”. Agora, pelo menos nada poderia sair da cidade ou passar por ela e perder-se para sempre.



Mas esta compensação era insignificante, e se havia alguma bênção nisto, estava completamente disfarçada. Como um leningradense, um estudante que agora reside na Inglaterra, disse posteriormente: “Não teríamos reconhecido qualquer bênção, mesmo que a víssemos. Estávamos por demais confusos. Jamais acreditamos realmente que os nazistas se aproximassem tanto de Leningrado como aconteceu. Havíamos sido condicionados a confiar nos nossos senhores e no poderio do exército vermelho. Éramos complacentes como a cigarra da fábula. Naquele domingo, quando as primeiras granadas foram disparadas, eu estava a cerca de 800 m da usina do Lago Ladoga, que foi atingida por uma delas. Na trincheira onde me abriguei, permaneci agachado perto de uma mulher que me sussurrou, totalmente confusa e espantada, que fora um engano dos nosso artilheiros”.



“Eles apontaram seus canhões para o lugar errado”, repetia ela sem cessar. E acrescentou, como que para explicar um engano justificável no ardor da batalha: “Pobres rapazes, pobres rapazes - eles ficariam chocados se soubessem do resultado do erro cometido. E pensar que alguns deles talvez tenham sido alunos meus - aos quais sempre disse que um erro é um erro e tem de ser confessado. Isto era parte daquilo que considero ensinar. É preciso reconhecer quando se comete um erro, seja ele qual for”



“Ela continuou falando enquanto a poeira levantada pela explosão nos cobria e os bombeiros corriam para a Fábrica Salolin, o próximo local atingido. Aturdido pela surpresa, estava meio perplexo quando um guarda da Defesa Civil me mandou embarcar num bonde e correr em ajuda dos trabalhadores da usina que fora atingida. Fiquei ainda mais aturdido quando voltei para casa, naquela noite, e vi os restaurantes e teatros ainda abertos. Era possível conseguir comida nos restaurantes sem cartões de racionamento e, embora não houvesse ali muita gente, fiquei espantado ao ver que nem todos se tinham refugiados dentro de suas casas. O bombardeio deixara-me aterrado. Era muito jovem, na época, e, como disse, tinha a fé muito abalada”.



Mas, no dia seguinte, quando as rações foram reduzidas, não foi ele o único a ter a fé abalada. Até, se a pessoa trabalhava em qualquer lugar que não num escritório, tinha direito a 815 gramas de pão por dia. Tinha-se direito a pouco mais de 450 gramas de carne por semana, 450 gramas de cereais, 240 gramas de todos os tipos de gordura e cerca de 670 gramas de açúcar. Como nosso entrevistado observou, as refeições nos restaurantes não estavam sujeitas a racionamento. Assim, a quantidade total de alimentos obteníveis, embora não desse para uma refeição opípara, era bastante generosa para uma nação em guerra.



Era mais generosa que prudente, fato este que não foi notado no anúncio oficial dos cortes nas rações feito a 2 de setembro. A ração de pão foi reduzida em um quarto, a carne em um terço e os cereais em um quarto. As gorduras e o açúcar foram ligeiramente aumentados e as refeições nos restaurantes e cantinas passaram a fazer parte do racionamento. Mas tudo dependia da existência de alimentos para distribuição, e a disponibilidade deles diminuiu rapidamente. A insinuação de fome feita pelo inimigo como uma bravata em 24 horas transformara-se em realidade.



Fora da cidade, embora, de modo geral, se tivesse chegado a um impasse militar, os alemães continuavam a avançar lentamente em ataques de penetração reduzida.



A despeito do estoicismo demonstrado pelos leningradenses durante o sítio, há evidência de que houve desertores e derrotistas em quantidade até alarmante, tanto no exército vermelho como no opolchénie. Não há números especificados nos registros russos, e embora os alemães informassem que “muitas centenas estavam passando para o seu lado, na linha de frente, provavelmente nisso havia bastante de bazófia propagandística”. Mas, ainda que pequeno o número de desertores, num estado totalitário o negócio ganha contornos alarmantes, e a rude garra da justiça vigente nesses estados logo se faz sentir: “A Seção Especial do NKVD da frente de Leningrado tomou logo providências no sentido de prender e submeter a julgamento os familiares dos traidores da pátria... Todos os soldados dessa frente devem ser informados de que aquele que deixar de agir contra traidores e criminosos, deixá-los escapar, ou revelar covardia e desordem diante do inimigo será implacavelmente punido como colaborador dos fascistas”. Para que todos sentissem que não se tratava de vã ameaça, o Pravda publicava o nome dos desertores, que eram presos e submetidos a julgamento, bem como os detalhes das represálias tomadas contra suas famílias.



Naturalmente, todos os exércitos dispensam tratamento muito duro aos desertores presos, mas os exércitos dos estados totalitários têm necessidade de estender a punição aos que apenas revelam sinais de fraqueza, de derrotismo, porquanto o moral de um regime que proíbe a livre expressão de pensamento e de opinião necessita de estímulo de contínuos triunfos; do contrário, logo aparecem fendas na fachada. Os resmungos, as reclamações, um certo desprezo para com os superiores hierárquicos, característicos do comportamento do soldado britânico, eram punidos no exército vermelho com a execução, e em tempos de desespero, como no sítio de Leningrado, a execução era sumaríssima. Os resmungos do soldado comum eram vistos como perigoso sinal de derrotismo, e não cometemos nenhuma exageração ao afirmarmos que um homem do exército vermelho era fuzilado ao amanhecer se expressasse desagrado diante da refeição que lhe forneciam.



Os traidores que tinham guardado em casa qualquer tipo de alimento não declarado aos controladores do abastecimento da cidade, os que falsificavam ou roubavam cartões de racionamento, os que, enfim, cometessem qualquer ação dolorosa envolvendo mercadoria de consumo obrigatório pelo povo, esses eram levados ao paredão.



Na primeira semana de racionamento, quando houve apenas leve insinuação da fome que se generalizaria na cidade, houve compras feitas em pânico, principalmente bens enlatados e conservas de luxo, e alguns funcionários de escritório tentaram passar para a classe de trabalhador braçal para que pudessem receber mais alimentos do que tinham direito como burocratas. Este tipo de coisa vinha acontecendo, sem maiores conseqüências, desde o começo da guerra, em junho. Quando, porém, a coisa começou a ficar preta, qualquer ato menos lícito, ainda que de ínfima significação, era interpretado como atentatório dos interesses do povo e punido com extrema severidade.



Contudo, os avanços de frente reduzida que as forças alemãs faziam não tinham o apoio suficiente para pôr a cidade sob ameaça de captura e ocupação, ainda que Hitler houvesse aprovado a jactanciosa intenção de von Leeb . Por volta de 8 de setembro, tanques alemães - pequeno número deles - chegaram a cerca de 16 km da cidade, o máximo que se aproximariam dela, pois o Alto Comando alemão voltava suas vistas para Moscou, afirmando que Leningrado, cercada como se encontrava, “cairia como uma folha”, sozinha, como Warlimont explicara, delicadamente, ao chefão.



Dentro da cidade, o acúmulo de desastres aumentava inexoravelmente. A 8 de setembro, um bombardeio aéreo e de artilharia, combinados, provocou quase 150 incêndios, alguns dos quais destruíram completamente armazéns e fábricas de alimentos. Um armazém, com quase três mil toneladas de açúcar, foi completamente destruído. Três mil toneladas de farinha também se perderam no ataque. Depois disso, tomou-se a decisão sensata, ainda que um pouco tardia, de dispersar os estoques de alimento, em lugar de concentrá-los nuns poucos armazéns de madeira, extremamente vulneráveis, situados na zona sul da cidade, onde estavam ao alcance da artilharia inimiga.



Ao escrever a respeito, Pavlov evita mencionar que ninguém fizera coisa alguma para impedir tal desastre; mas o fato é que os líderes só puseram trancas nas portas depois de arrombadas, assim recaindo sobre eles responsabilidade por tudo aquilo, que só fez piorar os efeitos do sítio. Também dificilmente se pode creditá-los com visão, quando permitiram que as rações de açúcar e pão continuassem inalteradas após o ataque destruidor de 8 de setembro; mas isto é verdade.É de Pavlov o seguinte comentário: “Hoje, passado o tormentoso período que enfrentamos, quando é fácil calcular até os gramas, pode-se dizer que a ração de açúcar não deveria ter sido aumentada em setembro. Contudo, na época, o véu da incerteza obscurecia muita coisa agora perfeitamente clara. Os sitiados simplesmente não imaginavam que o bloqueio da cidade duraria tanto”.



Seria de pensar que os figurões tivessem um pouco mais de imaginação; mas é de admitir também que houvesse alguma verdade na afirmação de que Stalin tinha certa birra com Leningrado, que procurava ardilosamente disfarçar procedendo com alguma generosidade quando interferia na administração da cidade durante o sítio - sempre, no entanto, para aumentar a confusão entre seus habitantes.



Aquele ataque e bombardeio, sobre o qual tanto se escreveu - sobretudo em ficção - foi apenas um de centenas que o inimigo agora desfechava. É verdade que os alemães não tinham ali aviões em quantidade suficiente para fazer ataques idênticos aos desfechados contra Londres em 1940; mas eram bastantes para se concentrarem sobre as fábricas do setor industrial da cidade, contra os terminais da ponte aérea e contra a única linha de abastecimento não-aérea disponível: a rodovia, a ferrovia, o lago e o rio de Leningrado a Tikhvin.



Este caminho era tão vulnerável que somente pequena percentagem dos suprimentos enviados chegava intata ao seu destino, e assim mesmo porque havia uma brecha de poucos quilômetros entre os alemães, em Schlusselburg, na extremidade sudoeste do Lago Ladoga, e os finlandeses, que ocupavam o istmo da Carélia. Por esta brecha passava uma ferrovia de bitola estreita, desde o Golfo da Finlândia até Osinovets, a pouco menos de 24 km ao norte de Schlusselburg. Em Osinovets havia, teoricamente, uma passagem para navios, pela parte sul do lago, até Novaya Ladoga, na extremidade sudeste, de onde fluía o rio Volkhov, e rio abaixo até a cidade de Volkhov. Dali, uma ligação ferroviário com Tikhvin ainda funcionava, embora o inimigo estivesse perigosamente próximo e houvesse freqüentemente batalhas nos arredores da cidade e de seu terminal ferroviário.



Todo trem e toda barcaça tinham de passar pelo trecho mortífero da brecha de Osinovets, facilmente ao alcance da artilharia inimiga montada em Schlusselburg, enquanto os bombardeiros de mergulho alemães operavam continuamente sobre toda a região sul do lago. Daí porque, do suprimento enviado à cidade sitiada, a quantidade que se perdia era sempre bem maior do que aquela que conseguia alcançá-la.



No começo, porém, a rota do lago era a única que a cidade possuía. Cais e trapiches foram construídos em Osinovets em espaço de tempo fenomenalmente curto, a praia foi escavada para aumentar-lhe o calado e construíram-se armazéns para estocagem temporária dos suprimentos que chegassem. Toda essa atividade foi protegida pela densa floresta que se estendia até as margens do lago, e por volta de 12 de setembro as duas primeiras barcaças, tendo a bordo, 800 toneladas de trigo, chegaram ali, após uma viagem tranqüila desde Novaya Ladoga. Os trabalhadores que haviam construído as instalações portuárias receberam-nas jubilosamente e a notícia do sucesso da linha vital se espalhou pela cidade com mais rapidez do que os incêndios nela provocados pelas numerosas bombas incendiárias que lhe foram lançadas. Todos sentiam que se restabelecera uma ligação com o exterior. O estado de espírito do povo melhorou. Chegaram mesmo a dançar alegremente nas ruas.



Mas o moral não permaneceu elevado por muito tempo. A 15 de setembro, chegaram três barcos maiores, cada um trazendo em seus porões mil toneladas de trigo que, para poupar tempo no terminal de Novaya Ladoga, foram despejados dentro dos barcos diretamente, sem serem ensacados. O processo adotado não foi nada prático, pois o cereal tinha de ser ensacado antes de descarregar e isto, naturalmente, tomou muitas horas. Como o porto, precariamente construído, só permitia o descarregamento de um barco de cada vez, os outros eram obrigados a ficar a descoberto no lago, onde não demoraram a ser vistos por um avião de reconhecimento inimigo.



Meia hora depois os Stukas chegaram, afundando dois dos tais barcos. Daí por diante, o inimigo passou a patrulhar toda a rota do lago com bombardeiros, mantendo também Osinovets sob constante fogo de artilharia. Embora, desse dia em diante, os barcos empregados no transporte de gêneros para a cidade partissem dos dois terminais à noite, os aviões atacantes esperavam que eles alcançassem a metade do caminho a percorrer para atacá-los à luz do dia, uma vez que a travessia do lago era feita em 16 horas de viagem.



Era uma tarefa quase desesperada a de manter o caminho desimpedido, mesmo quando canhoneiras da marinha soviética acompanhavam os barcos de abastecimento; a substituição de barcaças afundadas por ação inimiga também era muito difícil. Mas, durante um mês, tudo quanto conseguiram colocar na cidade foi feito por barcaças puxadas por rebocadores através do lago, não alcançando, no entanto, um décimo da quantidade embarcada em Novaya Ladoga, mal dando para oito dias de abastecimento da cidade. O resto, juntamente com as barcaças e tripulação, estava no fundo do lago.



No fim daquele mês de esforço heróico, a linha de abastecimento foi duplamente fechada pela chegada de outro inimigo igualmente implacável: o inverno.



Leningrado, uma cidade verdadeiramente setentrional, normalmente se realizava no inverno. Enquanto a neve caía sobre a grande estátua eqüestre de Pedro o Grande, a temperatura descia e o grande lago ia gradativamente congelando. O aniversário da Revolução de Outubro era festivamente comemorado por toda a parte. Alma Mahler, a mulher do compositor, diz em suas memórias que quando ela e o marido visitavam a cidade nessa época de carnaval, ficaram encantados com os bondes correndo sobre trilhos instalados no lago congelado, enfeitados com lanternas cuja luz se refletia no gelo.



Nesse alegre período, em tempo de paz, os leningradenses andavam, a pé, ou de trenó, pela neve, com latas de querosene para seus fogões (muito pouca gente usava aquecimento a gás ou elétrico) e os teatros e salas de concertos ficavam repletos todas as noites. No verão, o jardim botânico, os canais amenos e a pálida luz solar setentrional sobre as fachadas dos palácios e bibliotecas de Pedro o Grande, são belos e revigorantes. Mas os leningradenses são gente invernal numa cidade invernal. Calçados de botas e bem agasalhados, eles vêem todos os anos a cidade desaparecer sob seu manto branco. Repetem anualmente a remoção da neve que se acumula nas ruas, debaixo do vento cortante que sopra das planícies da Sibéria, e se orgulham da resistência que demonstram possuir.



Mas não viviam tempo de paz. Em 1941, o 12 de outubro não era aguardado com a alegria dos anos anteriores. A desolação pairava sobre a cidade. Prédios bombardeados erguiam suas paredes calcinadas sombriamente contra os céus gélidos; os bondes só corriam quando o suprimento de energia permitia e, mesmo assim, eram verdadeiras cavernas escuras e abarrotadas de trabalhadores cansados e que começavam a sentir os efeitos da falta de alimento. O jornal da cidade já estava saindo irregularmente, devido às restrições no consumo de energia provocadas pela escassez de combustível, e nele, além das tristes ordens oficiais do Comitê do partido e das notícias censuradas vindas da frente, começavam a aparecer sinais de desespero: tapetes, móveis e máquinas fotográficas estavam sendo trocados por comida, peixe, aves, enlatados e confeitos importados. Naturalmente, em teoria não devia haver alimentos guardados, mas por serem considerados artigos de luxo, estavam disponíveis fora do regime de racionamento, no começo da guerra.



Porém, tão desconcertante para a população da cidade quanto aquele inverno sem celebrações, e no momento mesmo em que foi cortada a ligação com outras cidades através do lago, causando em todos terrível apreensão quanto ao futuro, os alemães desistiram oficialmente de capturar Leningrado por meio se um assalto. A Diretiva de Hitler, assinada em seu nome pelo General Jodl, ordenava a von Leeb que desistisse da tentativa e se recusasse a aceitar a rendição da cidade. (Tal recusa era apenas um gesto para salvar as aparências: ninguém na cidade pensava em rendição, mas, naturalmente, também não sabiam da existência de tal diretiva. E se soubessem, para eles não fazia a menor diferença. Somente um rompimento do bloqueio é que poderia alterar a situação).



O passar dos dias e o frio cada vez mais intenso começavam a dar aos alemães a impressão de que o bloqueio era invencível. Havia inúmeros boletins oficiais informando os leningradenses das “ações travadas pelo Exército Vermelho para repelir as bestas fascistas do sagrado solo russo”- e, na verdade, as ações travadas eram tão numerosas quanto os boletins.



Invariavelmente se anunciava que a luta era “na direção de” determinado lugar, mas não se revelava quem se movia e em que direção. Em tempo de guerra, é compreensível que os informes sobre as atividades na linha de frente sejam reticentes, a menos que o lado informante tenha de fato muita coisa favorável a divulgar, mas, levando-se em conta a necessidade de tal cautela, é evidente que a imagem de um exército vermelho inconquistável, perfeito do princípio ao fim, tinha de ser preservada.



Não há nenhuma evidência de que os leningradenses, que suportavam terrível pressão, se mostrassem céticos ou cínicos diante do nebuloso noticiário que lhes faziam chegar, pois isso seria facilmente confundido com derrotismo ou quinta-colunismo, mas há provas de que, por menos que soubessem sobre o que verdadeiramente se passava na frente de Leningrado, eles se alheavam cada vez mais, com o passar dos dias, do que ocorria fora das linhas defensivas da cidade.



Pelo final de setembro, o carvão e o querosene disponíveis para o uso doméstico acabaram e havia muito pouco para a indústria. A ponte aérea tinha de ser usada exclusivamente para alimentos e, de qualquer modo, era inútil para o transporte de carvão e óleo na quantidade necessária. Assim, embora a fome rondasse muito perto, foi o frio que atacou os leningradenses primeiro. E a única resposta possível para o problema era a madeira - aliás, em Leningrado e na região do Lago Ladoga havia florestas capazes de remediar a situação, mas essas imensas áreas arborizadas estavam em mãos inimigas.



“A 8 de outubro, os Comitês da Cidade e da província executaram um plano para cortar madeira nas áreas de Paragalovo e Vsevolozhsk, no norte da cidade. As equipes de madeireiros eram formadas sobretudo de mulheres e adolescentes, que se dirigiam às florestas sem ferramentas e sem roupas adequadas, sem transporte e sem contar com acomodações para repouso. O plano tinha tudo para fracassar; pelo final de outubro, apenas um por cento dele fora cumprido. Numa das áreas, somente um quarto das 800 pessoas estavam trabalhando. Considerando-se as condições de trabalho que enfrentavam, padecendo fome e frio, realizaram milagres. Trabalhando a 40 graus abaixo de zero, eles estenderam uma linha até a ferrovia mais próxima, construíram alojamentos e enviaram quantidade considerável de madeira para a cidade.”



Mas, embora bem razoável, a madeira enviada ainda não era suficiente. Foi preciso abandonar a calefação central em escritórios, apartamentos e fábricas. Os trabalhadores de escritório passavam o dia inteiro envoltos nas pesadas roupas de saída; os operadores de máquinas, nas fábricas, encontravam-nas tão geladas, que as mãos chegavam a grudar nas superfícies de ferro. A caminho de casa, as pessoas muitas vezes desviavam-se quilômetros do rumo para ir aos lugares bombardeados na esperança de encontrar madeira para o aquecimento doméstico. A água congelava nos canos, tornando impossível a sua utilização para o que quer que fosse. Depois de algum tempo, tornando-se ainda mais intenso o frio, o mobiliário das casas passou a ser usado como lenha, e isto frugalmente - uma perna de cadeira ou de mesa dava calor para meia hora, mais ou menos, enquanto toda a família e alguns vizinhos se aconchegavam em torno do fogo antes de irem para a cama, para as poucas horas de sono possíveis entre um dia de trabalho e o outro.



O termômetro continuava a cair inexoravelmente. O Lago Ladoga começou a congelar, anulando até mesmo a frágil linha de barcaças que traziam alimentos de Novaya Ladoga. Apenas 45.000 toneladas de alimentos tinham sido transportadas para Leningrado desse modo, mas já era alguma coisa. Agora, restava só o recurso da ponte aérea.



O aniversário da Revolução de Outubro foi marcado por violento bombardeio da cidade. Não houve festas, embora algumas crianças recebessem uma caixinha de creme azedo e uma colher de farinha de batata e alguns adultos ganhassem uns poucos tomates salgados. Não havia nada além da ração-padrão de pão, carne e cereais que vinham pela ponte aérea. O pão estava reduzido a poucas gramas por dia e o povo passava horas na fila, à espera dos caminhões das padarias, que não tinham praticamente nada para aquecer os fornos. Quando os caminhões chegavam, havia na fila ligeira pressão para a frente, mas não se registravam tentativas de assalto aos caminhões de entrega do alimento, embora todos estivessem premidos por grande fome. A situação se tornaria muito mais desesperadora antes de se verificarem as primeiras manifestações da luta pela autoconservação.



O violento bombardeio com que alemães celebraram a Revolução de Outubro pôs em destaque a incapacidade dos serviços da Defesa Civil de enfrentar adequadamente as tarefas de salvamento e combate a incêndios. Em muitos locais, os danos causados pelas bombas e o frio enregelante cortaram o abastecimento de água, tornando virtualmente impossível a extinção de incêndios com jatos de alta pressão. Em toda parte, os próprios trabalhadores dos serviços de salvamento, de tão enfraquecidos pela desnutrição, tombavam quando escavavam para retirar mortos e feridos. Os incêndios, estimulados pelos ventos das nevascas, se espalhavam até se esgotarem nos cruzamentos entre quarteirões, onde não havia nada mais para consumir. A carne e os ossos das vítimas misturavam-se às estruturas destruídas, e tudo acabava recoberto pela neve que caía incessantemente.



Em meio a tanta adversidade, não seria de surpreender que o desespero viesse a secionar os últimos fios de esperança. Mas tal não aconteceu. Embora o ritmo geral da vida diminuísse pelo cansaço e exaustão, chegando quase a parar, realizaram-se milagres de trabalho e engenhosidade.Pavlov e vários químicos pesquisadores inspecionaram os restos das 3.000 toneladas de açúcar destruídas no armazém atingido no ataque aéreo de 8 de setembro. Verificaram que o calor reduzira tudo a uma massa enegrecida, cheia de cinzas, repugnante, endurecida pelo frio. Essa massa foi retirada dos escombros, aquecida, filtrada e transformada em confeitos.



Um leningradense disse que tinha “o gosto de borracha queimada, temperada com verniz, e continha pedaços de madeira carbonizada que haviam escapado à filtragem. Mas acho que tinha algum valor nutritivo. A questão é que lhe haviam acrescentado um pouco de goma-arábica, para que durasse muito tempo na boca, assim como um chiclete, e, portanto, estimulava a salivação e dava a impressão de que se estava comendo algo”.



No fundo do Lago Ladoga estavam as barcaças afundadas. Foi requisitado um quebra-gelo da marinha soviética para tentar traze-las à superfície. O inimigo não demorou a inteirar-se dessa atividade e a prejudicou com mais bombardeios de mergulho; mas, apesar disso, algumas das barcaças foram erguidas pelos sapadores do exército. Na maioria dos casos, a carga estava completamente podre. Contudo, foi possível recuperar algumas centenas de toneladas de cereais e, embora estivessem brotando, após longo período no lago, foram secadas e verificou-se que ainda eram utilizáveis.



Estes são apenas dois exemplos do que foi feito em termos de recuperação de alimentos. Muitos outros foram feitos, igualmente engenhosos e exigindo muita energia, à medida que as necessidades se tornavam mais prementes. Voluntários chamados a ajudar nessas tarefas, normalmente o faziam após terem trabalhado 12 horas, ou mais, em escritórios e fábricas onde não havia aquecimento, onde a luz era fornecida por velas e lanternas a pilha descobertas durante as buscas de alimento e lenha. Os que se apresentavam como voluntários - e eram muitos - tinham de caminhar até o local de trabalho, ficar em fila para apanhar o pedaço de pão a que tinham direito e reunirem-se talvez numa parte distante da cidade para mais duas ou três horas de trabalho com que não estavam familiarizados.



Já então, as comunicações por telefone e pelo rádio se encontravam praticamente paralisadas. Apenas as linhas telefônicas essenciais estavam em funcionamento e o rádio deixara de operar, exceto esporadicamente, quando havia energia. O equipamento de alto-falantes era usado somente quando conseguiam algo que pudesse acionar seus geradores (um método era acioná-los por meio de correias e engrenagens movimentados por um dispositivo de pedais de bicicleta acionados à mão). Em geral as notícias e ordens eram divulgadas, com atraso, pelas poucas edições dos jornais que podiam tirar, ou então oralmente, o que acabava sendo, mais rápido. Só que este método, evidentemente, pode ser influenciado pelos boatos e incompreensões. Mas não houve incompreensão sobre a notícia que chegou de Tikhvin a 9 de novembro.



Durante semanas, esta cidade, que era um terminal ferroviário, ficara no meio das escaramuças entre os exércitos adversários. Ambos sabiam ser vital mantê-la intata, pois era o único ponto de abastecimento para a cidade de Leningrado, e o exército vermelho a defendera com unhas e dentes em contínuas batalhas travadas em seus arredores. Apesar das atenções incessantes da Luftwaffe, a ponte aérea continuou, de uma forma ou de outra, a funcionar, embora não fosse grande o auxílio prestado ao comissariado de Stalingrado, mesmo sem as perdas impostas pelo inimigo. Houve dias em que os invasores foram repelidos para bem longe de suas imediações, e dias, bem mais numerosos, em que quase tomaram a cidade. Mas, de qualquer modo, o desastre final os russos sempre conseguiram evitar, debaixo embora de inimaginável sacrifício.



Então, no dia 9, o inimigo fez um avanço vitorioso. Após todo um dia de luta violenta, Tikhvin caiu. Tanto quanto se sabia, fechara-se naquele a última esperança de fazer chegar a Leningrado um grama que fosse de alimento. A fome ia engrossar.



O sítio: as semanas mais negras



Nos registros oficiais da cidade de Leningrado são raros os indícios de que os líderes políticos e militares russos se houvessem preocupado em levar ao povo qualquer palavra de conforto, de estímulo, que pudesse tranqüilizá-lo diante das notícias que cruzavam a cidade, enquanto se acumulavam os desastres. É provável que a cada reunião dos executivos do partido, do Conselho da Cidade e dos militares os Camaradas Zhdanov, Popkov e Popov procurassem descobrir a existência de deuses soviéticos para a eles se agarrarem a fim de que ajudassem a salvar a cidade. Se fizeram tais coisas, os registros nada dizem - ao contrário dos arquivos dos alemães, que são ricos em revelações de caracteres e emoções. Contudo, não é preciso recorrer a especulações para descobrir as providências tomadas quando explodiu a notícia da queda de Tikhvin.



O Conselho Militar da frente de Leningrado reuniu-se imediatamente. O ponto mais próximo possível era Zaborie, 96 km mais a leste. Havia uma estação ferroviária lá, mas nenhum aeródromo. De qualquer modo, todos os aviões da ponte aérea se perderam com a queda de Tikhvin e, com a batalha de Moscou então no auge, não seria possível abrir mão de nenhum para transportar alimentos para Leningrado. Assim, era inevitável a pergunta: de que maneira poderiam estabelecer uma ligação com Zaborie? Situada a leste do Lago Ladoga e ao norte do saliente alemão, Zaborie era quase que inteiramente formada de pântanos e florestas, sem nenhuma estrada; entre ela e Osinovets, o lago, congelado e impraticável ao uso dos transportes aquáticos. Ainda que fosse possível construir uma estrada na parte mais estreita do lago - a baía de Schlusselburg - até Zaborie, ela teria de ligar-se a Osinovets a fim de ter para Leningrado qualquer utilidade.



Naturalmente o conselho sabia que, no auge do inverno, o lago, congelado até o fundo, suportaria o tráfego de veículos pesados. O bonde de Alma Mahler era uma excursão sazonal normal. Mas a amarga ironia estava em que, embora o frio submetesse todos os habitantes de Leningrado à ameaça de morte por enregelamento nas casas sem aquecimento, a temperatura ainda não tinha caído o suficiente para congelar o lago profunda e uniformemente, de maneira a permitir a passagem contínua de veículos carregados. Normalmente, só em meados de janeiro é que a solidificação do lago alcançava 2 m de profundidade, o mínimo considerado necessário à segurança absoluta, quando e estendia os trilhos do bonde invernal.



Mas nada agora era menos conveniente do que as considerações de segurança. Antes que o Conselho encerrasse a sessão, um grupo de glaciólogos estava a caminho do lago para medir a espessura do gelo e opinar sobre a possibilidade de tráfego por ali. Mas eles voltaram com uma notícia desesperadora: na maior parte da área da baía a espessura do gelo não passava de 10 cm; era arriscado até mesmo para pedestres e pequenos trenós.



Fez-se um anúncio: “A administração não deseja ocultar a verdade ao povo. Com a perda temporária da cidade de Tikhvin, não pode haver a curto prazo melhoria na situação do abastecimento. O General Meretsokov e seus heróicos soldados do exército vermelho estão lutando pela própria vida e pela nossa, e seu heroísmo, por certo, será recompensado com a reconquista de Tikhvin. Entrementes, nossos Camaradas da Administração consideram que se faz necessário construir sobre o gelo do Lago Ladoga uma estrada para cobrir a distância que nos separa de Zaborie. Somente a construção dessa estrada pode dar-nos a possibilidade de receber suprimentos. A estrada será iniciada tão logo nos garantam os técnicos que o lago pode suportar peso adequado”.



Ao mesmo tempo, nova redução na quantidade de alimento distribuído foi anunciada. Da reserva da farinha disponível para poucos dias fez-se uma distribuição de 600 toneladas - um corte em quase 50%: Os trabalhadores especializados e o exército passaram a receber 216 gramas diárias de alimento, e assim mesmo se as disponibilidades permitissem, o que nem sempre acontecia, porque os problemas decorrentes da falta de veículos e de combustível para acioná-los impediram que a ração a ser distribuída chegasse aos postos onde seria apanhada pela população. Assim, embora a ração para cada trabalhador de alto nível, em termos de calorias, estivesse ligeiramente acima das 1.000 diárias - cerca de um terço das necessidades normais - era extremamente duvidoso que ele as recebesse. Os trabalhadores sedentários e as crianças recebiam menos ainda, e também raramente sua ração lhes chegava às mãos.



A intervalos pequenos a espessura da camada de gelo formada no lago era testada, e os técnicos expediam seus boletins. Eles não podiam oferecer qualquer esperança de um lago profundamente congelado antes de meados de dezembro, pois os ventos tempestuoso sopravam sempre e a neve caía às toneladas sobre os blocos de gelo e protegendo a superfície do lago contra o frio intenso que o teria congelado até o fundo.



Nove dias após a queda de Tikhvin, a 18 de novembro, quando o estoque de alimento dava para somente dois dias, em toda a cidade, um pequeno e preocupado grupo reuniu-se entre os armazéns bombardeados em Osinovets. Eram quatro oficiais inferiores do partido, um glaciólogo do Almirantado, e um cavalo magro, com um pesado cobertor ao dorso. O rosto dos homens, sob grossos capacetes de lã, era amarelado e macilento. As pernas do cavalo pareciam prestes a ceder e sua cabeça estava desalentadamente baixa. A neve rodopiava ao seu redor e o vento uivava pela baía. Eles haviam recebido rações, do tipo mais alto, para dois dias - 250 gramas de pão, uma fatia de carne prensada e uma barra de chocolate meio duvidoso. O cavalo transportava dois paneiros de folhas de uma conífera, que lhe serviam de alimento até que completassem sua tarefa - se a completassem.



Deveriam cruzar a baía - uma distância de uns 32 km - e se apresentarem à aldeia de Lednevo, na margem leste, estudando e marcando, no trecho a percorrer, uma rota que suportasse um trenó tirado a cavalo e carregando 100 quilos de suprimentos. Não se levou em conta onde o cavalo encontraria força para puxar aquele peso. Tampouco se a capacidade física daqueles cinco homens famintos suportaria o cruzamento daqueles 32 km de blocos de gelo, eivados de fendas e lugares ocultos com águas profundas.



Eram 06:00 h quando puseram a caminho. O lago congelado tinha um brilho fantasmagórico e em poucos minutos eles próprios estavam envoltos em neve. Sensatamente, eles se haviam atado uns aos outros com cordas, para que não se perdessem uns dos outros em meio à grossa nevasca. A cada quinze minutos, um dos homens verificava a direção numa bússola; e a intervalos de uns 100 metros o glaciólogo furava o gelo com uma espécie de verruma, lia a profundidade medida e inseria uma fina haste preta no buraco aberto. Um feixe dessas hastes era levado no trenó e cada uma era encimada por uma pequena bandeira vermelho-vivo, para servir de marcador.



Assim, eles avançaram lenta e dolorosamente através da nevasca. Muitas vezes encontravam fendas onde os ventos haviam rompido o gelo transformando-o em icebergs em miniatura. Era preciso marcar um desvio em tono dessas fendas - embora não houvesse a menor certeza de que o caminho permanecesse nitidamente assinalado por mais de algumas horas. Era bem possível que a neve ocultasse os marcadores, de um metro de altura. Contudo, era preciso confiar no destino, já que o fato estava inteiramente fora de ser controle, e o destino até então só tinha para os leningradenses voltado a face gélida, mortiferamente gélida.



Assim, prosseguiram eles, a guarda avançada buscando por entre a neve os trechos de gelo mais sólidos. Cada passo que davam era incerto, porque, mesmo que estivesse intata, a camada de gelo talvez fosse fina demais, precipitando-os dentro do lago. Atrás deles vinha o cavalo, cego pelas pancadas de neve, puxando o fardo que, se chegasse ao outro lado da baía, provaria apenas que a superfície desigualmente congelada suportara o peso de cinco homens e um animal descarnado - pelo menos uma vez.



E assim tinham feito. Na verdade, fora o Conselho Militar da Frente de Leningrado que, em desespero, decidira, no começo de outubro, que no caso da queda de Tkhvin, seria preciso estabelecer outro caminho para o leste. Eles haviam esboçado uma rota que começava com a travessia da Baía de Schlusselburg e, daí em diante, rumava para nordeste, para a cidade de Karpino, a leste para Lakhta, e depois para o sul, na direção de Zaborie. Esta era a rota; e era muito fácil desenhá-la no papel. Porém ela exigia a construção de uma estrada completamente nova, com mais de 32 km de extensão, aberta através dos bosques e florestas situados ao norte do bolsão alemão. Era chamada a Estrada Vital, e Zhdanov, Popkov e Popov consideraram o plano viável e imediatamente o enviaram a Moscou para aprovação, recomendando que o trabalho deveria começar logo.



Há gravações de conversas telefônicas, feitas pelos alemães e registradas em seus arquivos, mostrando que Moscou (e “Moscou” deve sempre ser lido “Stalin”) apresentou objeções: ao caminho em si, à idéia de antecipação de uma derrota em Tikhvin, ao fornecimento de materiais escassos. Mais tarde as objeções reduziram-se a simples atrasos, mas foram eficazes, porquanto impediram que se preparasse realmente qualquer coisa. Quando o pior aconteceu, a 9 de novembro, e Tikhvin caiu, tornando a estrada essencial, Moscou ordenou arbitrariamente a sua construção, “com a máxima rapidez” e acrescentou que somente pelos próprios esforços é que a cidade poderia vencer o fantasma da fome. “Neste momento, Moscou, envolvida em violenta batalha contra o inimigo do progresso socialista, estende a mão da camaradagem”, foram as palavras do telegrama, transcritas, com as mesuras de estilo, no Leningradskaia Pravda de 10 de novembro - edição de uma só folha que teve alguns exemplares afixados em lugares públicos, e anunciando também que a estrada seria construída tão logo o gelo apresentasse espessura suficiente. Não há dúvida de que a palavra camaradas servia de alimento para o espírito dos leningradenses, se não para o corpo.



Não se sabe o que eles pensavam sobre a desalentadora tarefa. É provável que não pensassem senão na fome cruciante que amargavam, embora habituados às campanhas e lemas. Apenas algumas semanas antes, no aniversário da Revolução de Outubro, eles haviam sido lembrados da tradição soviética - “saudar o feriado nacional com novas vitórias de produção” e o lembrete prosseguia: “Nossos coletivos saúdam calorosamente os Stakhanovitas da fábrica de rolamentos de esfera “L. M. Kaganovich”, de Moscou, e alegremente unem-se à competição socialista pré-aniversário. Desafiamo-los, caros camaradas, a entrar também na competição socialista das massas”.



Com a produção quase parada, por causa dos bombardeios, e com a morte pela fome e frio ameaçando a cada hora do dia, o apelo soava desagradável. Mas a fidelidade ao credo soviético sem dúvida o tornava aceitável. Há evidências de que chegou a registrar-se pequenino aumento na produção numa fábrica de vidros que produzia periscópios para tanques. Se os operários de Leningrado puderam aceitar o desafio de uma fábrica de rolamentos de esfera, sem dúvida não se espantaram com a notícia, vinda a 10 de novembro, de que teriam de construir a estrada sozinhos se quisessem sobreviver.



Mas o grupo que abria caminho através do lago a 18 de novembro sabia apenas que tinha ordens de marcar a rota e apresentar-se em Lednevo. Esta a contribuição especial que lhe cabia na construção da estrada, embora apenas vagamente soubesse que a jornada envolvia muito maior probabilidade de morte que de vida para todos, não só por causa dos perigos do próprio lago, como também da exaustão.



Ninguém sabe quando ou quanto eles descansavam, caíam ou eram obrigados a voltar sobre os próprios passos. Todos estão mortos - embora, extraordinariamente, não como conseqüência da espantosa jornada. Mas completaram a tarefa, chegando a Lednevo pela tarde de 20 de novembro. A travessia à nevasca praticamente constante. Essa épica jornada é citada palidamente nos registros do Conselho Militar de Leningrado como “relatório do Grupo de Reconhecimento”.



O relatório transmitido por uma linha telefônica terrestre uma hora após a chegada do grupo não encorajava muito a travessia por veículos pesados: o gelo ainda era muito inseguro. Mas a neve cessara e houve outra queda de temperatura. Leningrado decidiu arriscar o envio de um comboio de caminhões leves pelo lago, como se lançasse os dados pela última vez. A situação do abastecimento era verdadeiramente desesperada. Se os caminhões conseguissem atravessar, poderiam retornar com pequenas quantidades de alimento acumuladas em Lednevo durante o período do transporte de barcaças pelo lago; se caíssem nas águas do lago, perdendo-se, portanto, seria mais uma entre as tantas desgraças que fizeram residência em Leningrado.



Acontece que dez caminhões iniciaram a viagem e oito deles chegaram a Lednevo; os outros dois perderam-se no caminho, e caíram em precipícios gelados. Os oito retornaram, a 24 de novembro, com 33 toneladas de suprimentos - que pouco influiriam no consumo normal da cidade, que andava em torno de 3.000 toneladas diárias. Era, contudo, prova de que se podia atravessar o lago. E dava esperanças.



No dia 19, quando o grupo de reconhecimento fazia sua árdua jornada pelo lago, as autoridades militares em Lednevo já estavam reunindo trabalhadores para iniciar a construção da estrada até Zaborie. “Estrada” é força de expressão. Basicamente, era apenas uma clareira aberta através da floresta, a colocação de faxinas sobre pântanos e pequenos rios, retirada de blocos de neve para que os caminhões de abastecimento pudessem usar alguma espécie de trilha. Milhares de aldeãos - homens, mulheres e crianças - e soldados foram empregados nessa construção, trabalhando apenas com picaretas e pás para marcar o caminho, e serrotes para derrubar árvores. Eles não tinham nem limpa-neves nem bulldozers. Às vezes, um ou dois tratores apareciam para arrastar madeira, quando conseguiam a gasolina para movimentá-los. O trabalho foi em grande parte feito na base do esforço físico desesperado de pessoas que freqüentemente caíam mortas de fome e eram sepultadas sob a Estrada Vital, assim como seus ancestrais foram enterrados sob as estacas que serviram de fundações para Leningrado.



O trabalho era feito durante o dia e parte da noite, à luz fraca de fogueiras em torno das quais os trabalhadores se reuniam por breves períodos para se aquecerem e descansar. Quando as turmas se revezavam, os substituídos aproximavam-se dos braseiros e comiam sua minguada quantidade de pão, vez por outra suplementada por uma rama de nabo crua ou uma batata encontrada num lote de terra arável cuja colheita fora feita em benefício da cidade. À medida que a estrada se estendia para leste, encontravam-se umas poucas fazendas onde algumas galinhas haviam sobrevivido à fome, e estas era comidas em tristes tentativas de cerimônia alegre e com a distribuição cuidadosamente eqüitativa das carcaças quase descarnadas.



Naturalmente, no começo os construtores da estrada não sabiam se ela serviria à sua finalidade - o que só aconteceria se se pudesse estabelecer a ligação até a Baía de Schlusselburg através do gelo. Mas, anunciada a travessia mais ou menos bem sucedida do comboio leve, eles ficaram mais alentados. Também receberam prazo para completar a estrada - duas semanas. Os líderes do partido tinham calculado que depois desse período a morte visitaria gradualmente todos os habitantes da cidade se novas remessas de alimento não lhe fossem feitas.



Os dias passavam e a cena se repetia interminavelmente: os engenheiros do exército conversando com líderes dos grupos de trabalho, homens, mulheres e crianças jogando toneladas de neve para as margens da estrada, enquanto a neve continuava caindo. Caminhões, tratores do exército e, vez por outra, um tanque derrubavam as árvores que eram então lançadas sobre a área pantanosa da floresta; os toscos abrigos, feitos de galhos e encerado, abrigavam os que precisavam de algumas horas de sono; nos trechos formados por atoleiros mais extensos, grupos de estaqueadores antecipavam-se aos demais, para, com seu trabalho, tornar mais firme o solo. Às vezes a neve cessava de cair por algumas horas - ou mesmo por uns dois dias - e a luz nada confortável do sol invernal filtrava-se pelas árvores. Embora as mesmas cenas se repetissem, eram sempre numa parte diferente da floresta, sempre mais para leste. A 6 de dezembro a estrada chegou ao fim da floresta, restando apenas um pequeno elo a ser construído através de umas poucas fazendas em ruínas até Zaborie.



O trecho não seria mais que uma trilha provisória, com largura, na maior parte dele, suficiente para um só caminhão; o risco de vir a ceder ao peso dos veículos que o deveria cruzar era grande, se a temperatura viesse a subir, pois faria que os troncos de árvores colocados para entupir os fossos e pântanos mergulhassem no terreno encharcado pela ação do degelo. Mas a Linha Vital, ou Linha Mortífera, seria por onde fluiria o precário abastecimento do povo que parecia haver estabelecido um dramático compromisso com a morte pela inanição. Minutos após haver sido considerada pronta, o primeiro grupo de caminhões partiu de Zaborie.



O sítio: vislumbre de esperança



A Estrada Vital foi, a um tempo, um triunfo e um fracasso. Desconhece-se o número de pessoas que trabalharam nela - civis e militares, velhos e jovens, homens e mulheres. Não existem elementos capazes de nos dar a medida do sacrifício que a tarefa exigiu.



É imensurável a força que a esperança confere ao espírito humano que a ela se agarra em desespero. Aquela estrada, se assim se pode chamá-la, foi obra de moribundos para arrancar aos braços da morte uma cidade moribunda. Nisto, o triunfo. O fracasso estava nos defeitos da construção, imposta pelas circunstâncias.



O longo comboio, abastecido, carregado e pronto para iniciar a viagem três dias antes de completada a estrada, partiu com imenso cuidado. Excetuando-se a tragédia subjacente, o começo da jornada poderia muito bem ser considerado o início da aventura. Nenhum dos motoristas ignorava a misericórdia dessa jornada. Providenciou-se a suspensão das rígidas regras de distribuição de alimentos no respeitante aos construtores da estrada, durante a viagem do comboio, tendo em vista as condições em que se encontravam. Nos primeiros quilômetros, a viagem foi relativamente rápida, através das terras aráveis descampadas. Mas, assim que chegou à floresta, a construção tosca da estrada cobrou seu tributo.



Três horas após a partida, o comboio parou porque o caminhão da frente atolou na neve. A estrada era tão estreita, que o caminhão atolado não podia ser contornado, ocasionando este fato o primeiro atraso, que se repetiu inúmeras vezes durante toda a longa viagem. Não só a profundidade da neve, como a inclinação das colinas, os longos trechos pantanosos, as nevascas constantes, o bombardeio inimigo e o desconhecimento do terreno, tudo isto favorecia o caos e a perda de muitos caminhões. A distância máxima percorrida pelo comboio num dia, não passava de 32 km e, muitas vezes, não mais que a metade dessa distância. Quando os remanescentes do comboio finalmente chegaram a Lednevo, seis dias se haviam passado; e a lenta travessia do lago, com a velocidade dos caminhões reduzida a passo de lesma, para evitar a ruptura do gelo, ainda frágil, demorava mais 27 horas. Ao longo dos 160 km entre Leningrado e o terminal ferroviário de Zaborie, a estrada estava juncada de caminhões enguiçados ou atolados - mais de 350 deles. O imenso trabalho de construção da Rodovia Vital resultara na chegada de muito menos que o suprimento necessário para um dia.



Mas isto não foi divulgado; o que se anunciou foi novo corte nas rações. Este, entretanto, foi o ponto mais baixo atingido pelo desespero dos leningradenses - e de sua rações oficiais. A 9 de dezembro, e um mês depois que a perda de Tikhvin impôs sua construção, aquela cidade foi recapturada.



Pavlov deixou um relato muito conciso e digno de confiança da ordem dos acontecimentos militares que culminaram na retomada de Tkhvin.



“O Estado-Maior-Geral soviético estava cônscio de que, com a perda de Tikhvin, a situação dos defensores de Leningrado tornava-se mais precária com o passar dos dias e que, se se perdesse tempo, os alemães fortificariam suas posições, tal como acontecera, no começo de setembro, na área do Mga. Uma batalha poderia, então, assumir um caráter prolongado. O QG ordenou uma concentração de tropas, sob o comando do General de Exército K. A. Meretskov, na região da Ferrovia Setentrional. As tropas receberam o objetivo de esmagar as forças inimigas que haviam colocado uma cunha em nossas defesas e libertar Tikhvin.



“Conhecendo o poderio da força inimiga que dominava a cidade, Meretskov começou, cautelosa e gradualmente, a forçar-lhe os flancos e, pelo final de setembro, suas unidades alcançaram as comunicações do inimigo. Temendo o cerco, os alemães trouxeram grandes reforços, mas tarde demais. Ainda vestidos com roupas leves, devido à falta de previsão dos seus líderes sobre as necessidades de uma campanha de inverno, as tropas inimigas também sofreram com o frio muito intenso que começava. Na noite de 9 de dezembro, Meretskov abateu-se sobre as forças principais de Schmidt com todos os efetivos que possuía e tomou Tikhvin de assalto. O inimigo deixou 7.000 mortos no campo de batalha e muitos canhões, tanques e veículos destruídos. Mantendo os alemães sob pressão, os soldados soviéticos libertaram vários pontos habitados na área e repeliram o inimigo para a outra margem do Rio Volkhov. Um importante centro de comunicações que passara trinta dias nas mãos dos invasores fora recuperado.



“Pode-se dizer, sem exagero, que a derrota das forças germano-fascistas em Tikhvin e a recaptura da Ferrovia Setentrional até Mga salvaram milhares de pessoas da morte pela fome e reforçaram as defesas de Leningrado. A importância da vitória, em termos de moral, foi ainda maior: a sombra da incerteza que pesava sobre os sitiados desfez-se, enquanto que o sucesso amplamente divulgado do exército alemão na captura de Tikhvin, no começo de novembro - com a conseqüente expectativa de que Leningrado em breve cairia - agora dava lugar a enorme declínio no prestígio do exército inimigo e a confusão no setor da propaganda, onde reinava Goebbels.”



O trecho mais importante do resumo de Pavlov sobre a recaptura de Tikhvin é: “salvou milhares de pessoas da morte pela fome”. E realmente salvou. Ela marcou também um momento decisivo na sombria caminhada que o povo de Leningrado fez pela trilha do desespero e da desesperança.



Mas, embora se possa ver no dia 9 de dezembro, em retrospecto, um momento decisivo e o começo da longa marcha para a ascensão e a normalidade, tal fato não podia ser visto com tanta clareza naquele momento. As autoridades fizeram o que puderam para transformar a recaptura de Tikhvin numa ocasião de regozijo; e realmente, o mecanismo dos festejos foi acionado, com os trabalhadores nas fábricas tentando pateticamente aumentar a produção em homenagem aos soldados do General Meretskov. Contudo, o fato é que, embora aquele grande sucesso militar acabasse impedindo que a fome consumisse toda a população, seu efeito não foi, de modo algum, imediato.



Aquelas semanas foram as mais terríveis que Leningrado conheceu. Goya, em Desastres da Guerra, e Picasso, em Guernica, reproduziram horrores iguais aos de uma cidade sitiada e morrendo de frio e fome.



Não havia Goyas ou Picassos em Leningrado; mas a pintura de Kochergin, Junto à Cerca do Jardim de Verão, reproduz, com terrível simplicidade, um aspecto dos sofrimentos da cidade. Atrás das elegantes cercas do parque, as árvores estão recobertas de neve, e no primeiro plano jazem no chão dois corpos, duas obras de Deus que o homem destruiu, num desses momentos de loucura que com dolorosa freqüência o acometem. Em Leningrado era comum as pessoas saírem para suas jornadas, sem forças para completá-las, e cair nas ruas. Em pouco, a neve cobria-lhes os corpos até que visse o degelo da primavera; os que as viam tombar não podiam dar-lhes qualquer ajuda. Quem sabe tombariam mais adiante. A morte nas ruas era um terrível lugar comum que não despertava qualquer reação.



O sepultamento dos que morriam em casa ficava na dependência do aparecimento de alguém, parentes ou vizinhos, com força suficiente para realizá-lo. Não havia madeira para caixão nem espaço nos cemitérios.



Os buracos abertos pelo bombardeio que os alemães faziam se transformavam em valas comuns onde os corpos eram atirados sem qualquer cerimônia fúnebre. Os principais sistemas de esgotos foram bombardeados e não podiam ser consertados por falta de material e de quem pudesse fazê-lo. O acúmulo de excremento, de lixo e de corpos apodrecendo nas ruas eram uma ameaça permanente à saúde da população. Mas o frio intenso misericordiosamente impediu que a cidade acabasse por desaparecer de vez por efeito de graves epidemias.



Os ratos, tão famintos quanto os homens, infestavam as ruas, expulsos que foram dos celeiros e armazéns pela falta de alimentos. O povo, no entanto, dava-lhes caça para comê-los, assados ou ensopados. Gatos, cães e pássaros tinham o mesmo destino. Cavalos caíam nas ruas e no gelo do Lago Ladoga nas mesmas condições que os seres humanos, tristes montes de pele e ossos, com as últimas centelhas de vida apagadas pelo esforço de puxar um trenó com talvez uns 25 kg de mantimentos. Seus corpos eram retalhados ali mesmo e a carne que ainda restava grudada aos ossos era recolhida para processamento.



Processamento, palavra que ocultava um sem-número de maravilhas - realizadas não só pelos cientistas e dietistas de Leningrado, como por pessoas inexperientes. Famílias vasculhavam suas casas em busca de qualquer coisa que pudesse ter uso comestível. Os livros tinham suas capas arrancadas e a cola era derretida como ingrediente para sopa; óleo para cabelo era utilizado nas cozinhas; os intestinos dos ratos, gatos e outros animais que morriam ou eram mortos, depois de clarificados, viravam uma gelatina viscosa para passar no pão, quando havia pão; folhas de coníferas secas eram usadas para fazer caldos; papéis de parede eram arrancados para que a cola neles contida fosse comida de mistura com farinha; os ossos dos animais mortos - e talvez de seres humanos - eram cozidos durante horas em fogos mantidos com livros, cartas e tudo o que fosse inflamável, na esperança de que deles saísse um pouco de tutano; o fermento era transformado em sopa e esta em geléia. A engenhosidade das pessoas era inacreditável.



Os cientistas e dietistas eram igualmente engenhosos - e os resultados da inventiva demonstrada eram igualmente horríveis V. I. Sharkov, o diretor do Instituto Científico, tinha uma equipe de pesquisadores trabalhando dia e noite no levantamento do valor nutritivo e do potencial de processamento de tudo o que existia em quantidade suficiente para servir de ração para a cidade. Eles produziram milhares de toneladas de uma pasta feita de ramos de árvores novas, moídos, cozidos e misturados com turfa e sal, para ser distribuída aos cavalos na frente de batalha. A aveia, que era seu alimento adequado, era usada, com malte e cacau, para fazer pão. Duas mil toneladas de tripas de carneiro, destinadas à fabricação de cordas para violinos e outros instrumentos, foram misturadas com sementes de linho e óleo de máquina e transformada em salsichas.



Grupos de crianças e velhos saíam a vasculhar os cantos dos prédios que haviam armazenado alimentos. Os sacos que contiveram farinha eram virados do avesso e batidos, recolhendo-se o pó que deles se desprendia. A varredura do soalho dos curtumes produzia pó de couro que, misturado à serragem, servia para avolumar um arremedo de pastel que eles faziam. Um pesquisador comentou enigmaticamente: “Nada é saboroso, mas tudo é alguma coisa”.



Outro escreveu sobre a sensação de triunfo que invadiu o Instituto quando se descobriu que imensas quantidades de celulose reservadas para alimentar caldeiras de navios, podiam ser processadas e tornadas inofensivamente comestíveis, ainda que quase sem valor nutritivo, na seção de hidrólise de álcool da destilaria. “Lazutin, secretário do Comitê do Partido, falou com Skarkov a respeito desses depósitos de produtos aparentemente inúteis e mandou-o fazer experiências para descobrir se podiam ser transformados em alimento. Descobrimos que a celulose tinha um pouco de carboidrato e a semente de algodão continha pequena quantidade de glicose. Mas, infelizmente, também havia uma substância venenosa, que tinha se ser neutralizada antes de o produto ser entregue ao consumo. Conseguimos que o Camarada Lazukin canalizasse toda a energia elétrica para nós durante uma semana e, naquele período, elaboramos o processo de neutralização por hidrólise. Isto resultou na produção do pão de celulose”.



Pão de celulose, sopa de cola, geléia de restos de rato, leite de algas marinhas: a lista de sucedâneos de alimentos inventados era como o cardápio de um infernal banquete de bruxas. Mas, se não alimentavam, pelo menos davam a ilusão de breve satisfação. Uma satisfação mais real, embora mais terrível, era obtida com a ingestão de carne humana - o que restava dela - dos que tinham morrido. O canibalismo não chegou a generalizar-se e, naturalmente, não se faz referência a ele nos registros oficiais; mas Leon Goure, em sua história do sítio, cita testemunhas oculares e documentos alemães quando afirma:



“A maioria dos casos parece ter envolvido a mutilação ou desmembramento de cadáveres encontrados nas ruas ou guardados nos necrotérios antes de serem removidos para os cemitérios. Corria o boato de que a carne assim obtida era trocada no mercado-negro por comida mais convencional ou objeto comercializável, mas às vezes os próprios saqueadores a comiam. Falava-se até de pais que, enlouquecidos pela fome, comiam os filhos e vice-versa.”



Pouco menos chocante era a reversão lupina às exigências desesperadas da autoconservação, exemplificada pela reminiscência de um estudante: “Vi meu pai e minha mãe morrer - sabia perfeitamente que estavam com fome. Mas eu queria mais seu pão do que vê-los vivos. E eles tinham conhecimento disso. É o que me lembro do bloqueio: chegávamos a desejar a morte dos próprios pais para ficarmos com seu pedaço de pão”.



E quando as pessoas caíam mortas nas ruas, os passantes - segundo muitas testemunhas - não revelavam qualquer compaixão; só lhes ocorria a satisfação de saber que a reação que a eles cabia estaria à disposição dos que ainda se mantinham de pé. (Em outubro, quando as pessoas começaram a morrer de fome - que por eufemismo recebia o rótulo de morte por “distrofia alimentar”- houve quem se apropriasse de seus cartões de racionamento; mas as autoridades tornaram virtualmente impossível o uso do expediente, com a renovação compulsória dos registros, feita a intervalos irregulares, e com freqüente alteração do formato dos cartões de identificação.)



Todos esperavam que alguém morresse. E o número de óbitos aumentava sempre, com o passar das semanas. A fome chegou a matar 3.000 por dia. O inimigo físico permanecia fora da cidade, e somente informações muito vagas sobre a sua presença e sobre as batalhas travadas para repeli-lo chegavam aos leningradenses, para quem o mais cruel inimigo, o mais cruciante adversário, não tinha contornos visíveis. Era o cavaleiro apocalíptico chamado fome.



Goure cita um dos inumeráveis relatos de testemunhas oculares da permanente ronda da sinistra. O relato citado foi escrito por um médico: “Tendo encontrado o quarto, entrei sem bater e meus olhos deram com uma cena horrível. Um quarto escuro, as paredes cobertas de gelo e poças de água pelo chão. Estirado sobre algumas cadeiras estava o cadáver de um menino de mais ou menos 14 anos. Num carrinho de bebê havia outro corpo pequenino. Na cama, a mulher que alugara o quarto - morta. A seu lado, esfregando o peito, a sua filha mais velha Mikkau... Num só dia Mikkau perdeu a mãe, um filho e um irmão, mortos de fome e de frio. Na entrada, mantendo-se precariamente de pé, de tão fraca, estava uma vizinha, com o olhar horrorizado fixo nos mortos. Também ela morreu no dia seguinte”.



Outro médico descreveu cena passada num hospital: “Certa feita, demoramos sete horas para levar 200 soldados moribundos da rua para o andar superior do hospital. O quadro era um espantoso retrato de uma câmara de torturas medieval. A temperatura nas enfermarias normalmente era de 0o C. Os pacientes deitavam-se completamente vestidos, com casacos e cobertores e às vezes até colchões empilhados em cima deles. As paredes cobriam-se de gelo. Durante a noite, a água congelava nos jarros. A fome causava diarréia sangrenta nos pacientes, muitos dos quais, de tão fracos, não podiam usar os urinóis. Os lençóis eram imundos, porque não havia água para lavá-los. O único remédio disponível era brometo de sódio e nós o prescrevíamos aos pacientes sob diferentes nomes. Os vasos sanitários e urinóis viviam cheios de excrementos e refugos solidificados pelo frio cortante. A equipe médica mal podia manter-se em pé devido à fome, ao frio e ao excesso de trabalho”.



A aparência física dos sobreviventes era chocante. Males cardíacos e pulmonares, náusea provocada pela fraqueza, hidropisia, escorbuto, deixavam suas marcas terríveis. Os olhos, nos rostos descarnados, saltavam das órbitas; os ossos, revestidos apenas pela pele, eram tão visíveis como se estivessem cobertos por papel de seda. Os lábios pendiam frouxos e os dentes eram como se fossem presas engastadas em quase invisíveis gengivas. Ferimentos manchavam a pele brilhante dos atacados de hidropisia. As crianças tinham a barriga inchada, cabeças grandes e braços como se fossem varas; moças na puberdade não iniciavam a menstruação e as mulheres adultas paravam de menstruar. Se alguma coisa se via nos olhos dos moribundos, era indiferença. Num momento em que a grande dúvida de todos consistia em saber, se se sentassem ou deitassem, se teriam ou não condições de se levantar, que poderiam mais expressar os olhos daquelas quase sombras que erravam pelas ruas de Leningrado?



Mas também é verdade que embora todos estivessem espreitando pelas portas da morte, eles às vezes se voltavam em busca de prazer. Os teatros ocasionalmente abriam suas portas e atores e atrizes davam espetáculos à luz de uma única lâmpada. As platéias eram gélidas e muita gente desmaiava de fome e frio enquanto assistiam ao espetáculo cujos artistas mal eram ouvidos, de tão fracos. Eles eram obrigados a agasalharem-se tanto que não podiam fazer muita coisa para criar a ilusão de personagens, exceto para si próprios. Mas, para os que podiam suportar, sentados ou de pé, o tempo de duração do espetáculo, saíam realmente com o moral um tanto beneficiado.



Igualmente com o objetivo de revitalizar o moral da população, foi criada uma organização juvenil oficial, a Komsomol, para ajudar os que estivessem em situação de nada poder fazer. Karasev diz: “Estes grupos consistiam de cerca de mil jovens; além disso, em cada distrito, uns 500 ou 700 ajudantes extras foram mobilizados. Embora também cansados e terrivelmente famintos, mas apelando para o que lhes restava de energia, por serem jovens, estes, na maioria moças, ajudavam a população a superar suas terríveis dificuldades. Visitando casas sujas e gélidas, eles, as mãos inchadas, rachadas pelo frio e pelo trabalho árduo, cortavam lenha, acendiam fogo, apanhavam água no Neva para limpar o chão desses verdadeiros tugúrios, lavavam roupa, providenciavam uma refeição qualquer para esses quase mortos que visitavam e que expressavam sua gratidão com um esgar, porque já não sabiam sorrir. Só no distrito de Pirmoski, os membros do Komsomol visitaram 1.800 apartamentos em dois meses, cuidaram de mais de 1.000 doentes e, ao todo, ajudaram a mais de 7.000 pessoas”.



Naturalmente, o maior de todos os estimulantes do moral foi a notícia de que Tikhvin fora recapturada. E, embora não houvesse certeza de que o terminal ferroviário ficaria em mãos russas, havia, dentro do mortífero casulo que envolvia a cidade, uma teimosa, ainda que débil, luz de esperança. Era como se os regozijos mecânicos provocados pela comunicação oficial tivessem deixado sua marca.



“Alguma coisa aconteceu depois disso”, falou um leningradense. “A morte aumentava e permanecíamos no fundo e nada sabíamos do futuro, exceto a probabilidade de cair morto na rua ou a improbabilidade de despertar na manhã seguinte, se conseguíssemos chegar à cama, à noite. Mas algo nos penetrou e começou a aumentar lentamente pelo resto de dezembro de 1941 e em 1942.”



Na verdade, as pessoas não mais esperavam apenas sobreviver outro dia, mas olhavam para a frente, para uma época em que haveria uma renovação da vida, e não um esgotamento lento e terrível.



Mas a recaptura de Tikhvin apresentava muitos problemas práticos. Todas as pontes que sustentavam a linha férrea que ligava a cidade a Volkhov tinham sido destruídas pelos alemães durante a retirada. Até que fossem reconstruídas, Tikhvin seria para eles quase tão inútil como quando em mãos do inimigo, porque, sem a ferrovia, somente a pequena capacidade da ponte aérea podia ser usada para levar suprimentos a Leningrado. Além disso, a estrada do gelo sobre o Lago Ladoga agora teria de suportar um tráfego pesado e contínuo: não podia mais haver operações cuidadosas, com caminhões muito afastados uns dos outros e andando tão devagar que mais pareciam parados.



A grande dificuldade para que as pontes fossem reconstruídas residia em reunir e alimentar os engenheiros e construtores para fazer o trabalho e esta foi facilmente solucionada. Os engenheiros foram encontrados nas forças do General Meretskov, e várias centenas de trabalhadores especializados em construção foram recrutados em Leningrado e transportados em caminhões e aviões abastecidos com gasolina capturada aos alemães. Uma vez no local, eles foram alimentados com mantimentos também abandonados pelo inimigo. Essa alimentação, quase luxuosa, teve o efeito de revitalizá-los a tal ponto que foi possível organizar turnos ininterruptos e numa semana as pontes estavam de pé.



A estrada de gelo envolvia problema algo mais difícil. O tempo, como que aliado ao inimigo, esquentara um pouco e a superfície gelada, que vinha tornando cada vez mais forte, voltou a enfraquecer. Assim, logo que a ligação ferroviária foi reparada e começou a funcionar, e os suprimentos começaram a acumular-se em Lednevo, na margem leste do lago, toneladas deles se perderam quando trenós e caminhões afundavam no gelo enfraquecido. Zhdanov publicou uma exortação dirigida aos que tripulavam os veículos e atravessavam o lago:



“Prezados camaradas, a estrada de gelo da linha de frente continua funcionando mal. Por ela não vaza mais que um terço do alimento e do combustível necessário para acudir à fome do povo e à miserabilidade do soldado de Leningrado, ainda que o atendimento se reduza ao mínimo absoluto. Isto quer dizer que o aprovisionamento de Leningrado e da Frente está sempre por um fio e que a população e os soldados estão sofrendo terríveis privações. Isto é ainda mais intolerável porque os suprimentos para Leningrado e para a Frente estão disponíveis. Assim, cabe a vocês, trabalhadores da estrada da linha de frente, e somente a vocês, melhorar a situação rapidamente e aliviar o inacreditável estado de necessidade de Leningrado e da Frente. Ao trabalho, como devem fazê-lo os patriotas soviéticos, honestamente, aplicando nele todo o ânimo.”



Chega a ser curioso que numa época em que as mortes diárias alcançavam proporções alarmantes Zhdanov pedisse ânimo e força a quem não sabia onde buscá-los. Mas ele o fez e não foi em vão.



O sítio: a caminho da recuperação



Uma das mais bizarras formas de entusiasmo que o chamado de Zhdanov provocou foi uma competição entre os motoristas de caminhão para ver quem faria três viagens de ida e volta entre Lednevo e a cidade num só dia. Nas circunstâncias, tal competição era uma piada doentia. À parte a morte provável e iminente de todos os motoristas, os próprios caminhões haviam chegado a um estado de precariedade mecânica que praticamente desafiava consertos. Gasolina de qualidade ruim e falta de peças sobressalentes e de atenção tinham tido sobre eles o mesmo efeito da fome sobre as pessoas. Não obstante, quando o apelo de Zhdanov foi publicado, e engodados pela promessa, feita a 25 de dezembro, de um aumento de 50 a 25 gramas na ração diária de pseudopão e de um pouco de carne enlatada alemã, a resposta foi imediata.



Invocando um oximoro, havia uma espécie de festividade sombria. Os motoristas nomearam cronometristas, starters e verificadores entre si. Deixaram de dormir para saírem à procura de pneus em melhores condições, “preparando” os motores, realizando cirurgias mecânicas com espantosa engenhosidade. Os caminhões eram reunidos diariamente na oficina “Stalin”, na margem norte do Neva, iniciando a viagem entre vivas patéticos dos trabalhadores agrupados nos portões - e por mais de uma vez a energia de estímulo aos competidores mais entusiástica levou à morte alguns trabalhadores. Houve casos de morte de motoristas ao volante e de extrema exaustão provocadas pelo esforço feito por eles para colocar grossas peças de madeira sobre fendas no gelo. Mas surgiram cartazes saudando os comboios que retornavam: “A Pátria e Leningrado jamais se esquecerão dos seus esforços”, e todos os motoristas que completavam até duas viagens num só dia eram agraciados com medalhas e tinham seus nomes incluídos na lista publicada numa folha noticiosa especial da estrada de gelo, Frontovoi dorozhnik.



Ao mesmo tempo, em obediência ao estilo das publicações dos nomes dos desertores e de seus familiares que eram submetidos a julgamento por traição, avisos humilhantes eram colocados aos pára-brisas dos caminhões cujos motoristas haviam sido descuidados na sua manutenção e, em conseqüência, tinham enguiçado no caminho e atrasado os outros: “Será que os leningradenses perdoarão minha negligência?” Diziam que isto foi muito eficiente, porque fazia com que os motoristas faltosos se encolhessem ante os olhares acusadores dos outros. Era uma paródia ridícula do sistema adotado nas escolas públicas inglesas e talvez seja assunto para um ensaio sobre os suportes do comunismo - que, felizmente, não será feito aqui.



O Presídio do Soviete Supremo, em Moscou, também tomou uma atitude que teve excelente repercussão, instituindo uma medalha especial pela defesa de Leningrado. O Presídio, que muitas vezes complicara com seus métodos burocráticos os problemas da cidade sitiada, talvez estivesse sentindo a consciência pesada. Mas também Moscou fora sitiada e uma das batalhas mais violentas da guerra fora travada pela posse da capital. A batalha terminou com a vitória dos defensores, pela mesma arma que ajudara a derrotar Carlos XII da Suécia e Napoleão: o inverno russo.



A medalha pela defesa de Leningrado foi concedida no dia de Natal - data que não tem importância especial para os russos, mas que ganhou significação porque, naquele dia, 3.700 pessoas morreram de fome - até então o número mais alto registrado num só dia. A diminuição das mortes, medalhas, 50 gramas extras de pão, uma apresentação especial da opereta Rose Marie, à tarde, feita pela companhia de ópera ligeira, enfim, uma seqüência de fatos alegres dedicados a uma população bastante sofrida que as sereias denunciadoras de ataque aéreo interromperam bruscamente. Até o pessoal da companhia de ópera teve de subir, na escuridão da noite, aos frios telhados das casas para ajudar a neutralizar as bombas incendiárias. Terminado o ataque, a peça teve prosseguimento e os atores receberam, ao final, o tributo reverente do silêncio, pois os espectadores não tinham forças para aplaudir. Durante o silêncio, ouviram-se dois disparos. Eram dos fuzis de um pelotão de fuzilamento, do lado de fora do teatro onde outra platéia se reunira para presenciar um drama diferente. Pavlov dá o enredo dessa tragédia:



“A fome revelou o caráter de muita gente, pondo a nu sentimentos e pendores até então ocultos. A grande maioria suportou as agruras da fome, da dor física e da aflição mental com bravura e obstinação. Em geral, o povo continuou trabalhando honestamente; mas houve quem, habituado ao bem-estar dos tempos normais, revelou vícios e fraquezas que a mão descarnada de muita gente com quem tais pessoas se relacionavam. Como manchas de óleo em águia limpa, apareceram os egoístas que arrancavam o pão dos próprios filhos, os que roubavam as rações dos vizinhos ou tomavam o casaco de uma mulher doente em troca de 100 gramas de carne de cavalo - e muitos outros canalhas que não pediam tempo em aumentar o próprio bem-estar à custa do sofrimento alheio. Nada os detinha. O gerente de uma padaria do distrito de Smolinski, Akkonen, e sua empregada, Sredneva, roubavam no peso do pão que vendiam aos seus fregueses. Roubavam quatro ou cinco gramas de pão de cada ração de fome e as trocavam por peles, antiguidades e objetos de ouro. Os crimes de Akkonen e Sredneva foram à descobertos e o tribunal condenou ambos à morte por fuzilamento. Eliminara-se algo de podre do ar.”



O dia de Natal de 1941, em Leningrado, foi realmente um dia cheio.



Seguiram-se cinco dias de descompressão. As competições e toda a sorte de esforço só podiam trazer alimentos de Lednevo enquanto os estoques ali existentes agüentassem. Mas eles eram renovados de Tikhvin, por trens que paravam com freqüência por causa de reparos nas pontes apressadamente construídas e cuja travessia era tão perigosa quanto o gelo do Lago Ladoga. Passavam sobre essas pontes apenas dois ou três vagões de cada vez, para sobrecarregar as frágeis estruturas que as sustentavam. Os demais vagões que integravam a composição ficavam, desatrelados, aguardando o término da manobra. E como também só havia uma linha operando em quase todo o percurso, havia outros atrasos, enquanto os trens retornavam ao centro de abastecimento em Tikvin. Esta cidade também só esporadicamente era abastecida por trens vindos do leste, devido à violência das nevascas e à escassez de material rolante ferroviário. Todo o caminho, desde as bases de abastecimento situadas a leste de Tikhvin até Osinovets, era, em suma, um amontoado de perigos. Naturalmente, como diz Pavlov, impunha-se a reconstrução completa de toda a ferrovia.



“Mas, para isso, era preciso tempo, e a fome em hipótese alguma entra em acordo desse tipo. Enquanto o estado de coisas exigia que os trens funcionassem com o dobro da velocidade normal, eles estavam parados ou quase não se moviam. Recriminações e ameaças choveram sobre os ferroviários, que em última análise eram quem mais se magoavam com a história, pois não podiam cumprir o dever. Muitas vezes, os próprios empregados das estações de trem trabalhavam até ficarem com as mãos congeladas, carregando baldes de água para o tênder da locomotiva para que o trem pudesse alcançar o destino. As tripulações dos trens é que iam aos bosques derrubar árvores para abastecer as locomotivas, que funcionavam a lenha. Como tais árvores estivessem sempre molhadas, a madeira não ardia facilmente. Sem energia, os trens paravam ou moviam-se à velocidade de 10 ou 12 quilômetros por hora, com duas locomotivas. Queimavam-se grandes quantidades de madeira úmida, mas a pressão não alcançava índices elevados, daí as freqüentes paradas. Para acelerar o tráfego, mantinham-se locomotivas de prontidão em várias estações. Assim que o trem chegava, a locomotiva era substituída por outra, já abastecida com madeira mais seca. Esta prática exigia grande número de locomotivas, mas assim trens conseguiam mover-se mais depressa. Os maquinistas, foguistas e condutores dos trens de carga receberam um aumento de 125 gramas na sua ração de pão, para se manterem em condições de realizar bem esse trabalho penoso e difícil.”



Assim, por algum tempo, embora a recuperação da ferrovia fosse importante, era preciso duplicá-la como rota de abastecimento. A estrada pela floresta foi novamente usada, porque, com a captura de equipamento alemão, foi possível alargá-la e transformá-la numa rota razoavelmente transitável. “No começo de dezembro, Tikhvin assemelhava-se a um gigantesco formigueiro. Milhares de trabalhadores e soldados trabalhavam 24 horas por dia, descarregando os trens que chegavam e carregando os que partiam para Leningrado. Os caminhões, uma vez carregados, partiam para a longa jornada através de Koskovo, Kolchanovo, Sysstroi, Novaya, Ladoga, Kabora e a Estrada de Gelo, até Osinovets. O vácuo fora preenchido. O perigo de interrupção no abastecimento diminuiu, embora não desaparecesse de todo. Entretanto, o alimento entregue em Leningrado estava ainda longe de poder atender às necessidades do consumo. A viagem era longa, mais de 190 km, e a estrada era ruim, sendo quase impossível fazer-se uma viagem em dois dias.”



De qualquer modo, independente do enorme cuidado que era preciso dispensar às pontes e da falta de combustível, ainda não era possível aproveitar plenamente a ferrovia, porque o inimigo continuava ocupando a pequena cidade de Voibokala, alguns quilômetros a sudoeste da Baía de Schlusselburg. Mas o inimigo só tinha ali uma unidade isolada, portanto, de certo modo fácil de desalojar. A 31 de dezembro, soldados do exército vermelho a desalojaram e, às 05:00 h de 1o de janeiro, o primeiro trem partiu de Tikhvin para Voibokala. A estrada da floresta foi então novamente abandonada - embora, muito sensatamente, fosse mantida desimpedida e pronta para uso - e os suprimentos que chegavam a Voibokala eram transportados diretamente para Leningrado em veículos motorizados.Como que por caprichosa compaixão, o tempo também começou a ajudar a situação. Houve uma queda de vários graus na temperatura e a estrada de gelo sobre o lago congelou de modo a possibilitar o estabelecimento de várias rotas sobre o lago, e esta foi a primeira tarefa enfrentada no novo ano. Passados alguns dias, duas rotas para caminhões carregados e duas para vazios que voltavam ao terminal ferroviário de Voibokala estavam em funcionamento. Antes do fim de janeiro, 1.500 toneladas diárias de suprimentos estavam chegando à cidade por meio de “filas intermináveis de caminhões que se estendiam nas duas direções pelo lago”.



Era terrivelmente irônico que o número de mortes aumentasse justamente quando a alimentação passou a ser relativamente farta. Mas a libertação chegou tarde demais para milhares de leningradenses. Os efeitos da fome, mesmo quando chamada de distrofia alimentar, não são facilmente controlados. Seu curso é lento e, além de certo limite, irreversível, e os corpos descarnados de milhares de pessoas testemunhavam o tirânico domínio que exerceu. Não há dúvida de que cada um dos milhares que continuaram a morrer dos seus efeitos cumulativos poderia ter sido arrancado a esse destino com atenção individual, alimentação de glicose e vacinas e repouso absoluto - mas isto era impossível. Os hospitais ainda estavam no estado miserável observado por pacientes e médicos que mais tarde publicaram seus diários. As equipes desses hospitais figuravam entre as mais atingidas pela desnutrição e pelo excesso de trabalho, sofrendo por isso baixas em proporção superior à de qualquer outro grupo de trabalhadores. Assim, não houve possibilidade de dispensar os cuidados necessários para fazer convalescer aqueles que haviam chegado aos limites da resistência. Eles continuaram a morrer.



Muitos também continuaram morrendo pela ação direta do inimigo. Vinte mil granadas caíram sobre a cidade nos três primeiros meses de 1942 e houve 2.000 baixas. Os sistemas de defesa civil e de combate a incêndio haviam entrado em colapso devido a estragos causados ao sistema de abastecimento de água e, embora o Soviete da Cidade mandasse pô-lo “novamente em carga” sem demora, a tarefa era impossível. As pessoas simplesmente não tinham força para realizar mais trabalho algum e parece que as autoridades compreenderam isso, porque ninguém sofreu qualquer penalidade pelo descumprimento da ordem.



Não só o número de mortes aumentou com o novo ano e com o reabastecimento gradual dos estoques da cidade, como também o parque industrial caíra em estado de completa inércia. “Somente 20% das fábricas ainda tinham vidros nas janelas; as outras tinham suas fachadas feitas com tábuas.” Em 63% das fábricas não havia luz elétrica e 78% não tinham ventilação. Assim, em algumas delas, a concentração de gases prejudiciais e de fumaça era 10 a 15 vezes maior que o limite autorizado em tempo de paz. Segundo o diretor da Fábrica Kirov, “Tudo parou. Não havia combustível, corrente elétrica, bondes, água - nada”.



Algumas continuaram operando precariamente, utilizando métodos manuais de manufatura, ou com uma quantidade muito limitada de energia elétrica ou a vapor. Elas produziam pequenas quantidades de munição, minas e granadas de mão; consertavam também, de quando em quando, canhões, motores elétricos e tanques, ou realizavam outras tarefas... Mas, mesmo nas fábricas e oficinas que continuavam funcionando, era impossível manter uma produção contínua, devido às freqüentes interrupções no fornecimento de energia e à escassez de lubrificantes, matéria-prima, e peças sobressalentes, bem como ao fato de que os trabalhadores tinham de parar constantemente para descansar... Numa fábrica, os trabalhadores tiveram de amarrar-se aos tanques que estavam consertando, por temerem cair quando tontos de fome - e isto apesar do fato de que estavam agora recebendo 350 gramas de pão e 224 gramas de carne ou peixe (pescados através de fendas no gelo do lago) diariamente. Um trabalhador observou que “a sensação de fome parecia indeslocável; era como se as rações quase perdulárias que passamos a receber tinham de ir muito fundo dentro de nos, de nossos corpos desnutridos perdendo contato com nosso cérebro. Continuávamos acreditando que ainda estávamos com fome, embora nossos corpos começassem a recuperar-se”.



Apesar, contudo, do crescente índice de mortalidade, da desolação e do cheiro da destruição que tornava o ar fétido, o espírito de recuperação começou a bater com o coração da cidade. Era o pequenino mecanismo da esperança, uma pulsação quase inaudível e invisível, mantida pela faixa arterial dos caminhões que se estendiam interminavelmente pelo lago - e era interminavelmente interrompida pelo inimigo, que a bombardeava e metralhava dia e noite, mas cujos esforços se frustravam porque as bombas só causavam danos com a explosão após detonarem na superfície do gelo.



Esperança e desespero, vida e morte, sucediam-se tal como, na comunidade toda, a juventude se sucede. E, naturalmente, era a juventude que tinha mais resistência para repetir a pulsação com mais vigor. Alexander Werth, que nasceu em Leningrado e ali morou até os 17 anos, retornou à cidade como repórter em 1943, após uma ausência de 25 anos. Ele falou de uma conversa que teve com uma jovem de 15 anos, macilenta, ostentando a medalha de Leningrado e que trabalhava na linha de montagem na Fábrica Kirov:

“Onde recebeu essa medalha?”

“Um homem de óculos veio à fábrica certo dia, e me deu.”

“Seu pai trabalha aqui também?”

“Não. Papai morreu no ano da fome, a 7 de janeiro. Eu trabalhei na Fábrica Kirov desde os 14 anos e acho que é por isso que me deram esta medalha. Não estamos muito longe da frente.”

“Você não tem medo de trabalhar lá?”

“Não, não tenho. A gente se acostuma. Quando ouvimos uma granada assobiar, quer dizer que ela ainda está muito alto; só quando ela começa a chiar é que a gente sabe que está em perigo. Naturalmente, acidentes acontecem, acontecem com muita freqüência; às vezes acontecem coisas todos os dias. Na semana passada tivemos um acidente; uma granada caiu na minha oficina e muitos ficaram feridos. Duas jovens Stakhanovitas morreram queimadas.”

“Você não gostariam de mudar para outra fábrica?”

“Não. Sou da equipe da Kirov e o pior já passou, de modo que acho melhor ficarmos aqui até o fim.”



Werth prosseguiu seu trabalho, entrevistando o diretor da fábrica, chamado Camarada Puzyrev, “um homem relativamente jovem e forte, porém maltratado pelas preocupações”. Puzyrev disse-lhe:

“Você nos veio encontrar funcionando em condições anormais. Isto, hoje, não é bem uma Fábrica Kirov. Antes da guerra tínhamos mais de 30.000 trabalhadores; contamos agora com uma pequena fração daquele total, e 69% são mulheres, coisa que não tínhamos em nossos quadros. Fabricávamos tratores, turbinas, tanques e canhões; daqui saía quase todo o equipamento utilizado na construção do canal Moscou-Volga. Construímos uma variedade de máquinas para a Marinha, assim como motores de todo tipo para avião. Estamos agora com nossa atividade fabril bastante diminuída, posto que nosso equipamento de produção foi em grande parte transferido para o leste. Limitamo-nos hoje ao conserto de motores diesel e, principalmente, à produção de alguns tipos de armas portáteis...”



Estes dois entrevistados eram dois exemplos de resistência que só a juventude pode garantir. Através deles e de milhares de outros iguais a eles a leve pulsação da esperança podia ser ouvida com mais vigor. Os velhos e muitos homens de meia-idade continuaram a figurar no índice de mortalidade que, ironicamente, aumentara. Estes e os muito jovens não tinham mais reservas de resistência às quais recorrer.



Restaurada a ligação com o mundo exterior, teve início a evacuação. Algumas autoridades dizem que se impôs rígido controle aos que tentavam deixar a cidade, por serem necessaríssimos em Leningrado todos os que pudessem trabalhar. Na ordem do Comitê de Defesa do Estado, baixada em 22 de janeiro de 1942, consentindo na evacuação de meio milhão de habitantes de Leningrado, os velhos que conseguiram sobreviver, as crianças e os doentes tiveram prioridade.



O Comitê do estado ordenou também a remoção para o leste de todos os estabelecimentos fabris de Leningrado, trabalho que envolvia enorme dificuldade. Quando “tudo o que era animado e inanimado partia do oeste para o leste, nas semanas que precederam o início do sítio, a mudança foi detida pela captura, pelo inimigo, das linhas ferroviárias que convergiam para Leningrado. Enorme quantidade de máquinas ficou em desvios ferroviários, onde foi capturada pelos alemães ou deixadas enferrujar, o que acontecia depressa no inverno. Tudo que foi ali abandonado tinha de ser reunido, as máquinas-ferramenta, prensas, transformadores, geradores e vários outros aparelhos, recuperado para uso, quando possível e levado à sucata, se inútil.



Era um trabalho cansativo, demorado. O gado que se deslocava para o leste - o suficiente para ter alimentado toda Leningrado por vários dias - simplesmente morrera de fome nos vagões fechados. Até mesmo gente familiarizada com a morte sentiu compaixão desses pobres animais, vítimas inocentes e desnecessárias da guerra.



Acelerada ou lentamente, a evacuação de pessoas prosseguiu sem cessar. Pelo final de abril, meio milhão de pessoas tinham deixado a cidade para “o interior”. Se oficialmente organizados, naturalmente receberiam acomodações e trabalho. Se não, provavelmente iriam depender do auxílio de amigos e parentes, ou até mesmo de sorte. Testemunhas oculares informam que, a partir de janeiro, a coluna de refugiados era tão longa quanto a esteira de caminhões de abastecimento. As ligações aéreas com Moscou e outras cidades tinham sido retomadas e o pessoal importante foi transportado de avião. Outros enfrentaram longas jornadas a pé ou na carona nos caminhões de abastecimento que retornavam vazios pela rota do lago. Por volta de março, as ferrovias começaram a oferecer acomodações, embora limitadas, para passageiros.



Além do restabelecimento das ligações com o mundo exterior, foram também instalados oleodutos e cabos elétricos pelo fundo do Lago Ladoga, de modo que combustível e energia (da usina de Volkhov) passaram a ser novamente obtidos na cidade. A época era de reabastecimento. Mas, paradoxalmente, foi também de grandes perdas, ocasionadas principalmente pela morte. A evacuação, com seus percalços, levou centenas de milhares dos que haviam suportado tanta coisa. Pelo final de 1942, quase um milhão partira. As razões da partida eram as mais variadas, como incapacidade para resistir a qualquer outro sítio, medo do que pudesse acontecer num lugar tão vulnerável, anseio de renovação dos laços de família, a esperança de restabelecimento de um novo lar, ou simplesmente o desejo de desfrutar a sensação de fuga às garras da morte. Em muitos que ainda tinham força, o desejo de partir era quase doentio.



“As portas foram abertas”, registra a autobiografia de um leningradense; “era como ser solto de uma prisão. Não tinha plano algum em mente para o futuro; ia andando, ia embora, admirando o que quer que estivesse ao alcance dos olhos, como se nunca houvesse visto o mundo. A família desaparecera, a fome também, a diabólica fome curtida por tanto tempo. O mundo renascia”



Para outros, a partida parecia infinitamente triste. “Não nasci em Leningrado, mas a cidade me adotou, abrigou-me, deu-me trabalho. É verdade que ela quase me matou também, e sei que, nos momentos em que saía de um desmaio provocado pela fome, pensei muito em ir embora, só que não podia. Mas, com a vinda da primavera e com alimentos na cidade para todos, voluntariamente não abandonaria a cidade que passara por tanta coisa.”



Com a população reduzida a cerca de um terço do que tinha no começo da invasão, e com alimentos suficientes chegando à cidade, grandes esforços foram desenvolvidos para neutralizar os efeitos foram desenvolvidos para neutralizar os efeitos da fome e das doenças por ela desencadeadas. Carne e outros alimentos com alto teor de proteína, algumas gorduras, açúcar e cereais eram distribuídos em proporções relativamente elevadas àqueles cujos corpos haviam chegado aos limites da desnutrição.



Com muita freqüência surgiam casos realmente irrecuperáveis. Abriram-se centros de “nutrição reforçada” e, ironicamente, centenas morreram ali ao serem tratados e alimentados. A mulher de um médico registra: “gente fraca, pálida, esgotada (distrofia em segundo grau) vaga lentamente revelando-se surpresa por ainda estar viva. Sentam para descansar e expor as pernas aos raios de sol, que curam as úlceras provocadas pelo escorbuto. Mas, muitos morrem aos raios fracos do sol, pois estão além de qualquer ajuda. Há também muitos que já nem se podem mover (distrofia em terceiro grau). Eles jazem indiferente em suas gélidas casas de inverno, nas quais até o sol parece incapaz de penetrar. Eles são visitados por jovens médicos, estudantes de medicina e enfermeiras. Colocamos mais de 2.000 leitos no nosso hospital, incluindo a maternidade. Mas muito poucas crianças estão nascendo hoje em dia”. Os prazeres do amor e da concepção há muito haviam desaparecido nas sombras daquele imenso reino da morte chamada Leningrado.



Chegou a primavera, trazendo o sol e um pouco de calor. Mas também, trouxe um interregno de muitas semanas durante as quais o abastecimento da cidade esteve novamente em perigo. O lago, degelando lenta e gradualmente, passou a não suportar o peso do tráfego de veículos, ao mesmo tempo que os grandes blocos de gelo, diluindo-se devagar, impediam o uso de barcaças e rebocadores. Verificava-se a inversão do que havia ocorrido no começo do inverno de 1941.



Os leningradenses voltaram a pensar na possibilidade de outra fome, e tal expectativa foi reforçada quando explodiram violentos bombardeios contra a estrada de gelo e as ligações ferroviárias com Tikhvin. Como não se mostrassem, esses bombardeios, capazes de romper as linhas de abastecimento, os alemães tentaram sabotar a estrada de gelo usando tropas especialmente treinadas e com trajes camuflados; e esses homens penetraram, protegidos pelas nevadas tardias, até a estrada de gelo. Mas unidades de guardas haviam sido postadas ao longo da estrada, e os sabotadores foram descobertos e postos em fuga. Assim, o inimigo tornou a fracassar. Mas, onde eles fracassaram, o tempo obteve êxito. Pavlov avisou ao Soviete da Cidade da necessidade de apressar o armazenamento de víveres ou Leningrado estaria novamente em perigo. “Rapidez, rapidez - esta é a única medida.”



Era impossível aumentar a velocidade dos caminhões que cruzavam a estrada de gelo num revezamento contínuo. Era preciso evitar ao máximo os efeitos das vibrações enquanto o lento degelo prosseguia, o que significava que os cálculos dos glaciólogos e suas conseqüentes ordens quanto aos limites de velocidade tinham de ser obedecidos à risca. Ignorá-los só poderia resultar em danos irreparáveis à estrada de gelo. Assim, não havia nada a ganhar e tudo a perder com a simples ordem para os motoristas dos caminhões acelerarem. Contudo, havia outro modo de poupar tempo precioso.



A ligação ferroviária ainda só ia até Volbokala, a cerca de 40 km ao sul de Lednevo. Os suprimentos eram descarregados lá e recolhidos pelos caminhões da estrada de gelo. Se se pudesse estender a ferrovia até Lednevo, ou mesmo até Kabona, a mais ou menos 3 km ao sul desta, mas ainda à beira do lago, os caminhões poderiam fazer maior número de viagens através dele.



“Por um esforço titânico da parte dos trabalhadores, técnicos, engenheiros e unidades de reconstrução”, diz Pavlov, “a ferrovia foi construída e posta a funcionar. Os trens podiam, assim, ir até o lago. Na tranqüila aldeia de Kabona e seus arredores ressoavam os apitos das locomotivas, e numa grande área em torno da aldeia erguiam-se armazéns e cabanas, construídos às pressas e cercados de arame, para abrigar montanhas de sacos de cereais e de farinhas de diversas qualidades. Os caminhões deixavam Kabona, numa fila interminável, o mais rapidamente possível, em direção à margem oposta. Encurtando-se a distância a ser percorrida, as viagens de ida e volta foram aceleradas, aumentando as entregas e reduzindo o consumo de combustível para 200 toneladas diárias. A nova linha secundária foi de enorme ajuda para Leningrado, não só durante o inverno como também no verão”.



Assim, evitou-se outra ameaça. Quando o gelo começou a romper-se, os armazéns da cidade já estavam com suprimentos que durariam até que o degelo terminasse e o lago oferecesse condições de navegabilidade. Agora o povo podia entregar-se à reabilitação da sua cidade.



Enquanto isso se verificava, Hitler voltava a pensar em novo ataque a Leningrado. A ordem de 5 de abril do Alto Comando estabelecia: “O objetivo é destruir as defesas soviéticas e isolar o povo das suas mais importantes fontes de abastecimento. Para tanto, pretendemos manter nossa posição no setor central; no norte para provocar a queda de Leningrado; e no sul para forçar uma penetração para o Cáucaso”.



Naturalmente que os leningradenses de nada sabiam a respeito disso. Mas não lhes era difícil lembrar que a cidade ainda estava sitiada. Através de um esforço verdadeiramente inacreditável, eles e o exército vermelho haviam penetrado o bloqueio e aberto uma linha de abastecimento. Mas não é de modo algum depreciativo dizer que, na melhor das hipóteses, suas maravilhas de engenhosidade e construção não passavam de táticas precárias. A fragilidade da linha de abastecimento era salientada pelos freqüentes colapsos registrados nos trechos rodoviários e ferroviários, provocados pela necessidade de reconstruir pontes e reparar segmentos que qualquer bombardeiozinho destruía, e levava horas, às vezes dias, para se concluir.



Os alemães ainda estavam entrincheirados em torno de Mga, a apenas alguns quilômetros da cidade, num bolsão estreito, mas eficaz, que se tornou conhecido como o “corredor da morte”; havia também a ameaça de que se invertesse a situação em Tikhvin. Permanecia na lembrança de todos a sensação de que Leningrado era ainda uma cidade sitiada. A rigor, nada sugeria o contrário. Contudo, “realizava-se instintivamente um enorme esforço de renovação da vida em Leningrado”, segundo registro de um membro do partido.



Empreendeu-se a reabilitação com grande eficiência administrativa. Idéias eram discutidas, transformadas em ordens e executadas. Para ajudar a debelar os surtos de escorbuto, milhares de crianças das escolas foram mandadas em grupos para as florestas, para colher folhas de pinheiro, com as quais se fazia uma infusão para neutralizar os efeitos da deficiência de vitamina C; 70.000 alqueires de terra foram programados para a produção de legumes; turfeiras que tinham sido consideradas de pouca importância passaram a ser operadas, antieconomicamente, embora, para aumentar o estoque de combustível das usinas de força; a neve e o gelo começaram a ser removidos das ruas, e grupos imensos de homens e mulheres foram incumbidos de recolher e estocar madeira para o aquecimento do inverno seguinte. Nem a administração nem o povo pretendiam dar nova chance a que a fome montasse seu cruciante espetáculo.



Mas, infelizmente, as possibilidades teóricas não concordavam com as possibilidades práticas. O chá de folhas de pinheiro era virtualmente inútil, embora fosse bebido em grandes quantidades; a inexperiência da maioria dos que passaram a cuidar da horticultura e a fraqueza orgânica que apresentavam deram em baixa produção de legumes; a limpeza das ruas demorou meses, e não semanas, devido à exaustão física dos grupos empenhados nessa tarefa, e os coletores de lenha jamais recolhiam o suficiente, até que, em agosto, foi autorizada a destruição de milhares de casas de madeira que haviam sobrevivido ao bombardeio, para fazer lenha. (A ordem resultou, como não podia deixar de ser, num estoque de lenha, e em terrível escassez de casas.)



Mesmo assim, realizou-se um volume enorme de obras de recuperação. Estações bombeadoras foram reparadas, para que o sistema de abastecimento de água realmente funcionasse - pelo menos com pressão suficiente para levá-la aos primeiro e segundo andares dos quarteirões de apartamentos; a rede de esgotos sofreu os consertos necessários, para reduzir a possibilidade de epidemias de tifo e doenças semelhantes. Instruções elementares sobre o revestimento de encanamentos de água foram dadas em palestras públicas, a que eram os ocupantes mais velhos das casas obrigados a assistir; janelas e telhados foram repostos e consertados, e nos diferentes setores da cidade organizaram-se competições com o objetivo de acelerar o término dos trabalhos.



Um dos aspectos mais dolorosos da limpeza das ruas era a descoberta, a cada passo, dos corpos dos que, vítimas da fome, tombaram quando a caminho de casa, do trabalho ou de um lugar qualquer onde pudesse arranjar o que comer. Preservados pelo frio intenso sob as camadas de neve, seus corpos emaciados, envoltos em roupas pesadas, eram revelados pelo degelo. A horrível expressão que a fome colocara naqueles rostos, o tristíssimo espetáculo dos corpos amontoados nas ruas, tudo lembrava a desumanidade das guerras: Quantos também tombavam, vencidos pela exaustão, durante o trabalho de recolhimento dos cadáveres. A única diferença é que, agora, morriam ao sol e sem a dignidade de serem jogados a valas comuns.



Um deles, membro de um grupo de remoção da neve, que tombou quando trabalhava na mais bela avenida da gentil São Petersburgo, a Nevsky Prospekt, no fim da primavera, deu uma última olhada em torno e comentou que Leningrado “ainda era uma bela cidade”



Morrer numa bela cidade ainda é morrer. O prelado do século XVII, Jeremy Taylor, disse o seguinte da morte: “É algo de que todos sofrem, mesmo as pessoas menos corajosas, menos virtuosas, sem qualquer nobreza e sem qualquer discernimento. Eliminem-se as pompas da morte, os disfarces e os fantasmas solenes, os enfeites e as cerimônias à luz de velas, os menestréis, as carpideiras, os desmaios e os gritos, as enfermeiras e os médicos, o quarto escuro e os sacerdotes, os parentes e assistentes, então morrer é fácil, rápido e isento das suas circunstâncias incômodas. É a mesma coisa inofensiva que um pobre pastor sofreu ontem, ou que uma criada sofre hoje; e ao mesmo tempo em que você morre, morrem também mil outras criaturas. A cultura e equilíbrio de uns, a loucura, a tolice de outros, nada impedirá que um dia venham a morrer”.



O povo de Leningrado só tinha cerimônias de horror a acompanhá-lo, no primeiro ano de sítio, quando a morte ceifou à vontade. Mas, com a primavera e o verão de 1942, para os que restaram, as cerimônias eram de esperança. Eram coisas simples, mas que alegravam o coração.



A 15 de abril, o primeiro bonde a funcionar desde o outono abriu caminho pelas ruas, ainda repletas de neve e entulho, enfeitado com guirlandas de papel, transportando um grupo de funcionários da administração da cidade. Centenas de pessoas saudaram seu passeio pela cidade, marcada pelos bombardeios que sofreu. O bonde não era como os de outrora, belos e cintilantes, e ninguém o estava usando para passeios pelos parques e canais; tampouco os operários o utilizariam para ir aos locais de trabalho, pois a idéia de pôr bondes em funcionamento, com a energia ainda muito escassa, era só para transportar suprimentos dentro da cidade. Mas ele simbolizava a idéia de recuperação.



De igual modo, quando os estaleiros de Leningrado receberam ordens de construir doze barcaças de ferro para o transporte de bens de consumo pelo lago, no verão, a primeira destas, enviadas em seções para a margem do lago em trem, foi montada e lançada ao mar com todos os festejos que acompanham o lançamento de uma belonave. Popkov fez um discurso cheio de dados estatísticos, tonelagens e lembretes de que um longo e árduo preparo para o inverno se fazia necessário, para que os leningradenses não sofressem as agruras da má estocagem do verão anterior, não aludindo, no entanto, que se houve defeito na estocagem, ao povo não cabia culpa. Ele, naturalmente, estava certo ao conclamar o povo para o trabalho contínuo: somente pela organização, preparo e recuperação das comunicações e utilidades públicas é que se poderia construir uma muralha inexpugnável contra o ataque do próximo inverno - sem falar dos esperados ataques do inimigo.



E durante todos os longos dias do verão prosseguiram os trabalhos de arrumação da cidade. Com a população agora reduzida a menos de um milhão, as autoridades muitas vezes encontravam dificuldades em reunir os trabalhadores para o que tinha de ser feito, e as censuras eram freqüentes - como esta que foi publicada no Leningradskaia Pravda:



“Até agora, a campanha de limpeza da cidade tem sido completamente insatisfatória. Apenas a metade da neve e da sujeira das casas ainda são intransitáveis para pedestres e veículos, devido aos montes de gelo que nelas se encontram. Em muitos lugares, os esgotos pluviais ainda estão entupidos de detritos. Por causa disso, nalguns pontos a água se acumulou e está ameaçando inundar os porões e os pavimentos inferiores das casas. Centenas de depósitos de lixo por limpar tornaram-se fonte de infecção.”



Mas as censuras eram muito menos satisfatórias do que as ordens diretas, acompanhadas de ameaças e punições. Zhdanov emitiu mais um decreto - desta vez exigindo a mobilização de todo cidadão fisicamente capaz, entre 15 e 60 anos de idade, para trabalhar na grande limpeza da primavera. Os que já estavam em atividade tinham de aumentar a jornada de trabalho em mais duas horas, donas de casa e estudantes, em mais seis horas, e os operários, que estavam trabalhando pouco, porque às fábricas faltavam energia e equipamento, em mais oito horas. Todos tinham de carregar documentos certificando que sua tarefa e alto-falantes advertiam que “Qualquer um que deixe de cumprir o seu dever cívico não só infringe os princípios de disciplina do estado, infringe as regras da vida comunitária socialista, como também é um perigoso desorganizador, um parasita que ajuda o inimigo”. Aqueles que os tribunais civis consideravam parasitas tinham de pagar pesadas multas; os que conseguiam provar que haviam removido montanhas de lixo, e não montículos, eram recompensados com a permissão de ir aos banhos públicos. Só aos doentes era permitida a freqüência a esses lugares sem a necessária prova de que haviam cumprido a tarefa designada.



As ameaças e os apelos funcionaram, como provam as estatísticas levantadas pelos técnicos, que reduziram a números tudo quanto foi realmente feito: Trezentos mil cidadãos. Vinte dias. Um milhão de toneladas de detritos, neve e gelo. Três milhões de metros quadrados de ruas. Doze mil pátios; 1.574 quilos diários de detritos por pessoa. Estava tudo ali, impresso em documentos públicos.



Mas o que isto representou em termos de esforço humano ficou a cargo dos observadores mais imaginosos: “Havia donas de casa e crianças em idade escolar e homens de cultura - professores, médicos, músicos, homens e mulheres idosos. Um apareceu com um pé-de-cabra; outro, com uma picareta; alguém tinha uma vassoura; outro, um carrinho de mão; alguém trouxe um trenó de criança. Alguns mal tinham forças para arrastar os próprios pés. Cinco pessoas se atrelavam a um trenó de criança e puxavam, puxavam. Pois não tinham mais forças para fazer mais que isso”.



Mas, de algum modo, independente da fraqueza, das ameaças e da humilhação pública, um gigantesco esforço foi feito para transformar Leningrado numa cidade-fortaleza, auto-suficiente e capaz de resistir à campanha de inverno do inimigo. A meta jamais foi atingida plenamente - as exigências eram excessivamente grandes - mas, da multiplicidade de ordens para a limpeza, fazer estoques de lenha, reunir folhas de pinheiro, escavar turfa, aumentar a eficiência do serviço de defesa civil, aumentar a produção, construir mais barreiras nas ruas, sepultar os mortos, ajudar os vivos e fazer sacrifícios intermináveis, surgiram feitos quase inacreditáveis.



A 6 de novembro de 1942, com o inverno já bem adiantado e o lago aproximando-se novamente do estado entre o sólido e o líquido, tornando-se a estocagem de alimentos cada vez mais difícil, o secretário do Soviete da Cidade anunciou: “Conta hoje a cidade, em termos de população, com o essencial para atender as necessidades imediatas da sua economia. Aqui ficaram apenas os elementos úteis. As empresas industriais foram evacuadas. Escritórios e organizações consideradas não-essenciais numa cidade na linha de frente foram bastante reduzidos”.



Na verdade, ali permaneceram umas 750 mil pessoas. Pelo menos um milhão de habitantes morreram de fome. O restante, de um total de mais de 3 milhões de almas, que era a quanto montava a população de Leningrado, ou fora evacuado, ou convocado para as forças armadas, ou morto em bombardeios, aéreos ou de artilharia. Leningrado era agora uma cidade preparada para ação. E o secretário não deixou qualquer dúvida no espírito dos leningradenses sobre o que deveriam esperar para a primavera. Falou-lhes da diretiva de Hitler, cujo conteúdo disse ignorar, mas, pelos preparativos anotados entre os alemães, a cidade seria alvo de nova carga, e que todos deveriam estar preparados.



“O perigo que ameaça nosso país hoje aumentou”, disse ele. “O inimigo está avançando sobre os campos petrolíferos de Grozny e Baku; ele ameaça capturar Stalingrado, cruzar o Volga e tomar a costa do Mar Negro. Os nazistas não abandonaram seus planos de tomar Moscou e Leningrado.”



Na realidade, eles não haviam abandonado tais planos. Apenas haviam considerado impossível executa-los na primavera. O inverno tinha sido para os alemães tão desastroso quanto para os leningradenses. Apesar das dificuldades criadas pelas condições do tempo, dos problemas de abastecimento das suas imensas forças, de certa confusão nos planos, da falta de ligação entre Hitler e seus generais, do ataque incessante do exército vermelho e da permanente atividade dos guerrilheiros russos, que sabotavam e sabotavam, apesar de tudo isso eles estiveram muito próximos da vitória completa.



Von Bock foi substituído por von Rundstedt e, com a chegada do verão, melhorou muito a situação dos alemães, sobretudo porque a ofensiva de inverno do exército russo resultara no esgotamento da maior parte dos efetivos, passando ele a ser considerado uma força gasta, como diz Alan Clark. “As magníficas divisões do comando do Extremo Oriente não eram mais que esqueletos dos seus efetivos de dezembro, esgotadas por três meses de luta no pior inverno dos últimos cento e quarenta anos. O mais sério é que, à medida que o impulso do ataque diminuía, os russos voltavam às suas velhas e canhestras táticas frontais... de modo que, pelo final do inverno, os exércitos de Zhukov estavam num estado quase deplorável quanto o dos seus adversários - com a agravante de serem seus recursos em armas e homens treinados muito menores.” Por outro lado, o moral do exército vermelho era extremamente elevado, apesar do esgotamento físico, ao passo que os alemães estavam mergulhados em extrema depressão, embora lhes houvessem ordenado que impusessem aos russos, naquele verão de 1942, a “derrota final”.



Em linhas gerais, a grande vitória seria obtida através de rápido avanço Cáucaso adentro, para capturar os campos petrolíferos, lançando-se imensas forças para outra margem do Don e na direção do Volga, de modo a flanquear os russos que defendiam Moscou, dividindo em dois o exército vermelho, para sitiar, finalmente, a capital. O plano era sem dúvida arrojado, particularmente quando a Grã-Bretanha e Estados Unidos planejavam a abertura de uma “segunda frente” no ocidente. (Na verdade, a “segunda frente”, aberta com a invasão do noroeste da Europa pelos Aliados, só ocorreu em 1944, porque, se o tivessem tentado antes, ter-se-iam arriscado a derrota praticamente certa. Mas o Alto Comando alemão não sabia ao certo se desviava ou não tropas para enfrentar a ameaça aliada.)



O arrojo em estratégia militar muitas vezes dá resultado; e havia boa razão para que os alemães se satisfizessem com o rápido avanço de suas divisões blindadas, que repetiram a tática das primeiras semanas da invasão e avançaram praticamente desimpedidas sobre o Donetz e o Don, penetraram a rica região agrícola do Cáucaso e - como os leningradenses foram avisados a 6 de novembro - aproximaram-se dos campos petrolíferos de Grozny e Baku. Não havia, pelo menos aparentemente, motivo para o moral baixo das forças alemãs. Mas - citando novamente Alan Clark:



“Exército algum teria passado pelas vicissitudes daquele terrível inverno sem sofrer danos permanentes; tampouco fugiria à sensação de inutilidade diante dos sucessivos desapontamentos vividos no verão anterior, quando se alternaram vitórias e frustrações verdadeiramente cruéis. Para a nação alemã, ‘A Guerra’ significava guerra no leste. O bombardeio, a campanha dos submarinos, o fascínio do Afrika Korps eram coisas incidentais, quando dois milhões de pais, maridos, irmãos estavam empenhados dia e noite numa luta com os [russos].”



Assim, quando eles atingiram Sebastopol e ali ficaram enquanto destruíram a cidade com artilharia pesada, e o Volga, onde enfrentaram os defensores incrivelmente obstinados de Stalingrado, os sinais de depressão começaram de novo a manchar o colorido dos sucessos. E quando, no final de novembro, o exército vermelho fez contra-ataques particularmente vigorosos ao norte e ao sul de Stalingrado e aprisionou mais de 250 mil alemães numa armadilha implacável, a blitzkrieg ruiu por terra - tanto pelo precário moral da tropa como por falhas da estratégia.



Contudo, a derrocada da Blitzkrieg não representou o fim do bloqueio de Leningrado. Enquanto os alemães ocupassem Schlusselburg e o bolsão do “corredor da morte”, a cidade dependeria da insegura superfície do Lago Ladoga para o transporte dos suprimentos que lhe eram imprescindíveis. E o espaço de tempo entre o momento em que o lago ficava entupido de blocos de gelo, no começo do inverno, e aquele em que o congelamento de sua águas alcançava profundidade suficiente para suportar o peso dos caminhões que o teriam de cruzar era de perigo fatal. Mesmo muito reduzida a população da cidade, então com menos de um milhão de pessoas, e alimentada frugalmente, o consumo de alimento era grande, não permitindo interrupções demoradas. O aprovisionamento feito desde que se verificou a recaptura de Tikhvin estava sempre ameaçado de queda a nível perigosamente baixo. Naturalmente, além disso, os bombardeios de artilharia e os ataques aéreos prosseguiam implacavelmente.



Mas, com o colapso da blitzkrieg, algumas unidades do 11o Exército alemão tiveram de se deslocar para o sul, a fim de reforçar a tropa que ali sofria pesado ataque russo. E foi essa retirada que deu ao General Govorov, comandante da frente de Leningrado, e ao General Meretskov, o libertador de Tikhvin e comandante da frente de Volkhov, a chance de desfechar ataques simultâneos contra o bolsão de Schlusselburg. No começo de 1943 foi delineado todo o plano de bombardeio de artilharia que precederia os ataques e, a 12 de janeiro, o avanço do 67o Exército de Govorov e do 2o Exército de Choque de Meretskov obteve sucesso imediato. Em dois dias eles se haviam reunido e foram reforçados para superar os contra-ataques alemães. Desesperadamente, o inimigo trouxe mais tropas da retaguarda; mas o axioma militar que classifica de tolice tentar com reforço remediar o fracasso ficou plenamente comprovado. O exército vermelho avançou praticamente desimpedido, infligindo ao inimigo pesadas baixas, e por volta de 18 de janeiro havia aberto uma passagem de 11 km de largura pelo bolsão de Schlusselburg. “corredor da morte” ainda era um nome adequado, pois uma passagem tão estreita haveria de ser inevitavelmente perigosa; mas os comandantes soviéticos consolidaram rápida e sensatamente suas posições dentro dele, em lugar de dispersar forças na tentativa de repelir o inimigo mais para o sul e alargar a passagem - objetivo de realização duvidosa.



Assim, a cidade teve outro motivo para regozijar-se. “Nossa alegria em saber da penetração foi ilimitada”, escreveu um leningradense. “Todos tinham nos olhos lágrimas de felicidade. Agora, robustecia-se a esperança de que os odiosos alemães seriam realmente repelidos. Então a vida será mais fácil.” Mas a ocasião foi festejada de um modo prático, e não com cerimônias. No mesmo dia em que Schlusselburg foi recapturada, os sapadores do exército soviético iniciaram a reconstrução da ferrovia que a ligava com Leningrado. Em três semanas a tarefa terminou - e isso exigiu a construção de uma ponte para conduzir a linha sobre o rio Neva. A 7 de janeiro, na tarde de um dia sombrio, o primeiro trem a entrar em Leningrado desde o início do sítio, dezesseis meses antes, foi recebido na estação de Vitebsk por enorme multidão. “Em abril, o bonde”, disse um lacônico leningradense, “agora o trem. Talvez estejamos mesmo vencendo”.



Eles ainda não estavam vencendo. Mas a suspensão do bloqueio, a ponto de permitir o restabelecimento da ligação ferroviária com o resto do país, tornando assim Leningrado livre da obrigatoriedade do transporte pelo Lago Ladoga, assinalou um momento decisivo na batalha pela cidade - e, em última análise, de toda a guerra. Agora era possível trazer equipamento pesado e suprimentos que haviam sido negados às forças do general Govorov porque as necessidades de uma cidade faminta eram a maior prioridade. Da mesma forma, agora era possível trazer trens carregados de soldados descansados - eles estavam sob o comando do general Fedyuninsky - e construir uma cabeça-de-ponte de imenso poder de fogo distante de Leningrado, a oeste, na margem sul do Golfo da Finlândia. Isto foi feito no transcurso dos dez meses restantes de 1943; e, por volta do outono, o plano para a grande ofensiva russa estava pronto.



O historiador soviético Valentin Kovalchuk diz que, já então, o exército vermelho superava os alemães em volume de tropa e em quantidade de canhões, tanques e aviões.



Os generais se esforçavam ao máximo por não denunciar ao inimigo as suas verdadeiras intenções, tanto simulando preparativos para ataques que não pretendiam fazer, como através da contra-espionagem. A intenção real era iniciar a ofensiva de dois pontos simultaneamente - projeto que deu como resultado recapturar Schlusselburg em janeiro, mas que ganharia dimensão muito maior. As tropas concentradas ao sul do Golfo da Finlândia deviam avançar para sudeste; as que defendiam a frente a leste de Leningrado, em Volkhov e Novgorod, atacariam na direção sudoeste. Os dois ataques teriam o apoio de toda a esquadra do Báltico, que se encontrava estacionada no Golfo desde o início do sítio, e, antes que começassem, haveria ataques simulados que ocupariam as reservas do inimigo. O ataque principal estava marcado para iniciar-se a 14 de janeiro de 1944, e seu objetivo era nada menos que repelir todas as forças do Grupo de Exércitos Norte para as fronteiras da Estônia e Letônia.



Era uma tarefa formidável. Os alemães, sabendo da importância moral e estratégica da libertação de Leningrado, haviam-se entrincheirado a uma profundidade de quase 320 km. Esses entrincheiramentos eram conhecidos como “a inexpugnável muralha setentrional” e recebera o codinome de “Pantera”. Eles eram vigorosamente fortificados e defendidos pelos 16o e 18o Exércitos, cujos comandantes tinham ordem de lutar até a morte, como realmente tiveram de fazer.



Na noite de 13 de janeiro, a força aérea soviética bombardeou as posições poderosamente fortificadas do inimigo ao sul do Golfo e o ataque começou. Tão velozmente avançaram os russos, que os alemães, surpreendidos, perderam as posições de linha de frente. Quase que com a mesma rapidez, eles se recuperaram e revidaram com a ferocidade ditada pelo desespero - e realmente precisavam fazê-lo, pois a grande amargura dos russos diante do prolongado sofrimento de sua amada Leningrado precisava ser extravasada.



Apesar do desespero com que se defendiam os alemães, o 2o Exército de Choque do General Meretskov forçou um avanço contra a muralha “inexpugnável”, numa extensão de 3 km e numa frente de 10 km, avanço que jamais seria repelido. Pelo anoitecer de 17 de janeiro, o Exército de Choque ampliara sua penetração para 24 km e penetrara 8 km através das principais fortificações de defesa da “Pantera”. Assim como os alemães deixaram transparecer, diante da garra dos defensores de Stalingrado, em 1942, certo desfalecimento de ânimo, quando a blitzkrieg foi contida, os comandantes russos começavam a sentir que também ali em Leningrado murchava a capacidade de defesa do adversário.



Passados alguns dias, os alemães foram obrigados a render as posições de artilharia que durante dois anos e quatro meses vinham bombardeando Leningrado. Os 85 canhões ainda estavam intatos e os artilheiros passaram a usá-los de forma a que suas granadas caíssem sobre a linha defensiva alemã, que se enfraquecia gradualmente. Os leningradenses, sem dúvida, saborearam devagar a satisfação de disparar aqueles canhões contra os próprios alemães, que punham em marcha à ré a demolidora máquina de guerra de Hitler.



Eles continuaram recuando durante as restantes semanas de janeiro. Mil prisioneiros feitos e duas divisões alemãs foram completamente destruídas. Quanto a equipamento, pegaram os russos 265 canhões, 159 morteiros, 30 tanques, 274 metralhadoras e 18 depósitos de munições. O entroncamento ferroviário em Mga foi recapturado a 21 de janeiro e, pelo dia 29, outros importantes centros ferroviários, em Lyuban e Chudovo, estavam sob controle russo. Moscou e Leningrado ficaram novamente ligadas por ferrovia.



A 27 de janeiro, o povo de Leningrado foi informado para que aguardasse um comunicado especial do serviço de alto-falante, já recuperado. Trabalhadores receberam permissão de largar suas ferramentas e ir às ruas comemorar. Grandes multidões acorreram à Nevsky Prospekt. O tráfego estava interrompido. O vento invernal uivava, e o céu estava denso com a neve que caía. O povo enchia as ruas da cidade, que tinha as janelas das casas abertas ao ar enregelante. Músicas marciais precediam o aviso. Quando a tarde caiu, Zhdanov falou:



“Durante a luta de hoje, completou-se uma tarefa de importância histórica: a cidade de Leningrado foi completamente libertada do bloqueio do inimigo e do bombardeio da sua artilharia.”



Dizem que houve um silêncio de cerca de trinta segundos; depois do que a cidade explodiu em festa. Todos dançavam nas ruas e nas praças. Ao anoitecer, 324 canhões dispararam uma salva de 24 tiros em saudação à vitória. Fogos de artifício subiram aos céus durante toda a noite e enquanto suas estrelas luminosas caíam sobre a cidade, caía também a neve, sobre os vivos e os mortos de Leningrado.



Os patriotas da cidade



Um dos muitos pronunciamentos feitos pelo Soviete da Cidade, durante o auge da fome, foi: “Se o audaciosos inimigo tentar penetrara em nossa cidade, aqui encontrará o seu túmulo. Nós, leningradenses, homens e mulheres, todos os patriotas da cidade, agindo como uma só pessoa - da criança ao velho - travaremos luta de morte com o salteador nazista. Saberemos ser destemidos e defenderemos abnegadamente cada rua, cada casa, cada pedra da nossa grande cidade”.



A coisa na chegou a esse ponto, como aconteceu em Stalingrado - de cujos subúrbios os alemães foram repelidos rua por rua, metodicamente. Chega a ser risível que tal transmissão se dirigisse a um povo que não tinha força sequer para erguer-se do chão se escorregasse nas estradas geladas. É possível, no entanto, que alguma coisa lhe desse forças para resistir, ainda que fracamente, se o inimigo forçasse a entrada.



Como resistiram eles? Quando Zhdanov anunciou o fim do bloqueio, a 27 de janeiro de 1944, 879 dias se haviam passado desde que a primeira granada caíra sobre a cidade, a 1o de setembro de 1941; e a cidade fora virtualmente cercada pelo inimigo três semanas antes disso. Durante 900 dias os leningradenses haviam resistido.



É fácil dizer que eles não poderiam ter feito outra coisa, pois o inimigo lhes bloqueara todas as saídas. Evitar os bombardeios, não podiam também. A afirmação de que não tinham alternativa não procede, porque através da revolta poderiam ter forçado seus líderes a render a cidade em 1941, ou a qualquer momento durante o pior inverno dos últimos 150 anos que tiveram de amargar. Não há dúvida de que teriam morrido, de qualquer modo, mas não seria de fome: teria sido um massacre. E talvez, como disse Jeremy Taylor, se eliminarmos as pompas da morte, seja fácil morrer, seja qual for o meio. Contudo, eles não se revoltaram; suportaram o castigo do mais terrível frio, da fome mais cruciante, sem queixa, sem revolta, sem aviltamento.



É possível que por trás disso tudo estivesse a inimizade política de Zhdanov e Stalin, que detestava o isolacionismo daquele. (Zhdanov e Popkov, o comandante da guarnição, mais tarde morreram de circunstâncias que nunca foram claramente explicadas). É possível também que disso resultassem algumas das táticas obstrutivas que Moscou adotou e que nada fizeram para ajudar os leningradenses durante o sítio.



Os patriotas da cidade - os que restaram - reconstruíram Leningrado depois da guerra. A estação do metrô de Avtovo até a Estação Finlândia foi refeita. As escolas e a Universidade, as fábricas, as usinas hidrelétricas, os institutos de pesquisa, tudo foi posto de pé. Os bulevares e palácios de Pedro o Grande foram restaurados, as árvores dos jardins públicos, que haviam sido derrubadas para servir de aquecimento, e as 19.000 casas que haviam sido destruídas, puseram-nas de novo de pé. Construiu-se um monumento - talvez justificavelmente, porque a memória humana parece ser menos resistente que o espírito humano. É um pedestal de granito sobre o qual se ergue uma representação simbólica da Mãe-Pátria. Um pouco abaixo, uma chama arde dia e noite. Franklin D. Roosevelt, a 17 de maio de 1944, enviou às autoridades da cidade um pergaminho em que se lê:



“Em nome do povo dos Estados Unidos da América, ofereço este pergaminho à Cidade de Leningrado como uma homenagem a seus bravos soldados, à lealdade dos homens, mulheres e crianças que, isolados, pelo invasor, do resto do país, e apesar do bombardeio constante e de indizíveis sofrimentos causados pelo frio, fome e doenças, defenderam com êxito sua cidade durante o longo período crítico de 8 de setembro de 1941 a 18 de janeiro de 1943, simbolizando assim o espírito inquebrantável dos povos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e de todas as nações do mundo que resistem às forças da agressão.”



Em janeiro de 1945, com a guerra chegando ao fim, o Presídio do Soviete Supremo concedeu a “Ordem de Lenine” aos patriotas da Cidade.

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